Artigos | Marcelo Carneiro da Cunha

As crianças estão bem

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As crianças estão bem
O ano é o distante 1972. O local, a distante Califórnia. Os personagens são uma família de origem irlandesa, portanto católica, portanto com um número de filhos muito superior a qualquer coisa que se possa imaginar, algo como oito, pela minha última contagem. As Crianças Estão Bem, mas a fogueira do Vietnã arde, consumindo a juventude (pobre) e a imagem de invencível que os Estados Unidos adoravam ter de si mesmos. As crianças estão bem, mas faz apenas quatro anos que Martin Luther King Jr. e Robert Kennedy foram assassinados pelo crime de tentarem fazer do país um lugar mais justo. As crianças estão ótimas, mas Nixon está pertinho de ser descoberto e sofrer o impeachment por conta de coisas que, na opinião dele, não seriam crimes, desde que cometidos pelo presidente. Nostalgia do que não está nem tão longe, nem tão perto, é algo que os americanos sabem trabalhar bem demais. É fascinante ver o que era proibido – tudo – e o que as crianças acabavam fazendo – idem. É fascinante lembrar que num mundo não tão distante, todo mundo andava sem cinto de segurança e fumando, até em aviões. As crianças não tinham um adulto ao redor o tempo inteiro. Podiam sumir por horas, talvez dias, em uma casa com oito delas, antes que alguém achasse estranho. Não havia GPS, não havia celular e, portanto, uma criança podia – mesmo – ter um espaço e tempo livres da opressão educacional e comportamental do adulto responsável. E, por sua vez, esses adultos tinham uma visão completamente diferente da infância de hoje: havia um apartheid entre os dois mundos, infantil e adulto, e as crianças somente podiam atravessar a linha divisória deles quando algo muito dramático acontecesse, tipo um incêndio na ala infantil. Bons tempos aqueles, não é mesmo? A família Cleary surge da dura depressão econômica, papai e mamãe Cleary não costumam suavizar o que dizem na hora de expressar o que pensam. O politica e socialmente correto ainda não tinha sequer sido inventado, e crianças não eram criaturinhas angelicais a serem protegidas do mundo, ao contrário. Elas deviam ser expostas a ele, como eram expostas ao vírus do sarampo, se esperando que fossem fortes o bastante para sair do outro lado sem marquinhas ou traumas. Em 1972, o trauma ainda não tinha sido inventado. Oito filhos dão aos roteiristas um arco que vai da primeira infância à vida adulta, e eles exploram para criar personagens com os quais qualquer espectador pode se identificar. Meu filho, de oito, se identifica (acho) com o narrador e seus 12. O narrador diz o que vê, o que ouve e o que entende, que fica um pouco aquém do que realmente acontece, e isso é bonitinho. O irmão mais velho ia ser padre, tão obrigatório nas famílias irlandesas como nas portuguesas, pelo visto, mas desiste – problemão para o segundo irmão, que não está muito a fim de ter que assumir o posto clerical da família, justamente quando arruma uma namorada. […]

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