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Desapaga POA: uma nova forma de ver a história de negros, indígenas e periferias em Porto Alegre

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Desapaga POA: uma nova forma de ver a história de negros, indígenas e periferias em Porto Alegre Cartão postal da cidade antiga /Banco de imagens do Projeto Monumenta Porto Alegre – PMPA/IPHAN

Este artigo tem o objetivo bastante direto de explicar o que é e tentar seduzir a você que me lê a usufruir o projeto Desapaga POA, que vai ao ar nesta semana, a partir de sexta-feira (30/4): um novo canal de podcast (para ouvir) que chegou disposto a contribuir para “desapagar” a história de negres, indígenas e periferias, às vésperas de a cidade completar 250 anos de sua data oficial de fundação.

Para tanto, a equipe do projeto – formada por 20 pesquisadores dos campos da história, museologia, antropologia, comunicação e música – imaginou dois desafios: recontar ou revisitar histórias porto-alegrenses que traduzem o protagonismo e a contribuição de negres, indígenas e periferias na memória da cidade; e buscar uma visão crítica e um pouco mais aprofundada de conhecidos debates, sem medo do encontro com contradições marcantes.

Um exemplo de contradição marcante? Festejar o desenvolvimento urbano da cidade, o ajardinamento das ruas, o surgimento das grandes avenidas, como o vivenciado no período logo após o golpe de proclamação da República – época na qual ocorreram grandes transformações como a construção do viaduto da Borges –, e ao mesmo tempo saber que esse processo teve como consequência a expulsão dos mais pobres para fora do que se considerava a cidade. Ou seja, foi tirada do centro e empurrada para a periferia.

Saída para os arrabaldes de bonde /Banco de imagens do Projeto Monumenta Porto Alegre – PMPA/IPHAN

Outra contradição marcante? O mito da fundação açoriana posto diante da demografia negra da população habitante de Porto Alegre nos anos que marcam a virada do século 18 para o 19, os anos em torno de 1800. Todos os levantamentos de população da época demonstram que a maioria dos seus moradores era formada por pessoas negras. População essa tão numerosa que enseja inclusive a possível condição de que a atual Capital tenha sido um entreposto estratégico do tráfico negreiro. Poucos anos após a fundação da Vila da Madre de Deus, portugueses e espanhóis firmaram o Tratado de Santo Ildefonso (1777), que resultou na entrega definitiva da cidadela portuária de Colônia do Sacramento aos espanhóis, o que ocorreu, coincidentemente, no período auge do tráfico negreiro que fez do Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, o maior porto escravista do mundo de então. Era através de Colônia que os portugueses introduziam a mão de obra escravizada nas estâncias do lado espanhol.

Como afirma o historiador Luciano Gomes, “a escravidão era plástica em Porto Alegre”. Os negros em quase todas, senão em todas, as funções de trabalho e serviços desde as origens da cidade.

Omitir é apagar.

Docas apinhada de embarcações /Banco de imagens do Projeto Monumenta Porto Alegre – PMPA/IPHAN

E sobre os povos originários, outra contradição emerge da visão romantizada que a intelectualidade do 19 cultivou sobre os indígenas, um fenômeno da literatura nacional expresso em Porto Alegre, por exemplo, na lenda da Obirici, escrita por Caldre Fião, um dos mais prestigiados entre os cronistas antigos da cidade. A existência indígena é remetida às calendas pela historiografia tradicional, mesmo que todos saibam – e ela mesma tenha revelado em vários de seus escritos – que a população de imigrantes chegada dos Açores fora fixada às margens do Guaíba justamente por consequência dos conflitos entre colonização e indígenas, como é o caso, por exemplo, da guerra guaranítica, eclodida 20 anos antes da criação oficial da Vila.

Por razões possivelmente nobres para sua época, a historiografia tradicional criou o mito de uma fundação açoriana, sem explicar com mais detalhes que os casais fundadores da Capela de São Francisco aqui permaneceram por verem frustradas as expectativas de seu assentamento nas Missões, de onde estavam sendo expulsos jesuítas e indígenas, e porque estes últimos não aceitaram pacificamente a ordem de passar para a banda oriental do rio Uruguai, rebelando-se e alterando os planos oficiais da época.

Em outras palavras, para o Despaga POA, os povos indígenas, em sua diversidade e em suas estratégias de sobrevivência diante do processo de ocupação dos territórios do Continente de São Pedro por portugueses e espanhóis, estão diretamente ligados, de diversas formas, à origem e ao surgimento de Porto Alegre.

Não reconhecer significa apagá-los.

Cidade se modernizava na primeira década do século 20 /1910 /Fototeca Sioma Breitmann/ Museu José Joaquim Felizardo /Banco de imagens do Projeto Monumenta Porto Alegre – PMPA/IPHAN

Os áudios trazem histórias como as lendas do escravo Josino, da Maria Degolada e da índia Obirici, entre outras que marcam a história do centro e a evolução das periferias da cidade.

Formas do transporte de mercadorias no Mercado Público /Banco de imagens do Projeto Monumenta Porto Alegre – PMPA/IPHAN

Financiado com recursos da Lei Aldir Blanc e selecionado em edital organizado pela Secretaria Estadual da Cultura e Fundação Marcopolo, o Desapaga POA chega com esse tom provocador, oferecendo um riquíssimo mosaico de histórias e informações que há tempos estavam adormecidas no debate existencial da cidade.

Numa série inicial de 10 episódios em áudio – como os antigos programas de rádio –, o Desapaga POA intercala programas que tratam de questões negras, indígenas e das periferias da Capital, com edição dramatizada pela trilha sonora com direção e criação de Bebeto Alves e participação do professor de canto e dança guarani Arlindo Kuarai, morador das aldeias da região.

No seu primeiro episódio, com o tema Origens da divisão da cidade entre centro e periferia, a lenda da Maria Degolada e os conceitos de favela e maloca, o podcast destaca os perímetros antigos, lembrando que Porto Alegre possuía um portão localizado aproximadamente onde hoje está a Praça Argentina e que o primeiro mapa definindo o arruamento inicial, desenvolvido pelo capitão Alexandre José Montanha, em 1772, segue desaparecido.

Desenho de época de Porto Alegre em 1836

Tal mapa foi imaginado pelo historiador Paranhos Antunes, em 1940, num esboço dessa planta original, com algumas das ruas principais desenhadas em paralelo ao Cais do Porto – como são os casos da Rua da Praia, da Riachuelo e da Rua da Igreja (atual Duque de Caxias) – cortadas por outras transversais no sentido cais em direção ao alto do morro, da atual Catedral e do Palácio Piratini. Desde 1772, contudo, transgredindo o planejamento do Capitão Montanha, surgiram os becos e as ruas secundárias – o lugar onde viviam os mais pobres que, afinal, existiam! –, fazendo nascer uma primeira divisão segregadora entre cidade alta e cidade baixa. Entre uma Porto Alegre “intramuros” e outras que se estabeleceu nas áreas mais alagadiças do seu entorno antigo.

A Maria Degolada e o STF hoje

O episódio número um do Desapaga POA destaca também a lenda da Maria Degolada, a santificada personagem vítima de um feminicídio em 1899, no Morro da Conceição, tema clássico quando o foco vai para as periferias e suas histórias em Porto Alegre.

Além de apresentar as diversas versões que preservaram a memória do violento crime praticado pelo praça da Brigada Militar cabo Bruno Bicudo contra sua companheira Maria Francelina – versões essas que resultaram na crença dos poderes miraculosos da santificada Maria Degolada –, o podcast traz o assunto para o tempo presente, lembrando que há poucos dias o STF, finalmente, mais de 130 anos depois dessa brutal ocorrência, definiu que não se pode mais aceitar a legítima defesa da honra como atenuante de feminicídios.

O primeiro episódio do podcast – que será transmitido também pela Rádio FM Cultura (107,7) nos próximos 10 sábados a partir do dia 1º de maio, sempre às 9h – finaliza com uma análise sobre os contextos em que apareceram as “favelas”, no Rio de Janeiro, e as “malocas”, em Porto Alegre.

Corso com gasóleos /Banco de imagens do Projeto Monumenta Porto Alegre – PMPA/IPHAN

As cidades brasileiras influenciadas pela Belle Époque

“A Porto Alegre da virada do século 19 para o 20 é uma cidade que está inserida no contexto amplo da revolução técnico-científica, quando surge o primeiro sistema de iluminação a gás, os bondes com tração animal e depois os elétricos, as primeiras redes de água e esgoto, o telégrafo, o telefone, a fotografia e o cinematógrafo, transformações que causam grande impacto em cidades como o Rio, São Paulo e Porto Alegre, que passam, então, por um processo de reformas urbanas marcadas por uma visão elitista, dos republicanos da Primeira República, que queriam inserir o Brasil no capitalismo internacional”, explica o professor da PUCRS e doutor em história social Charles Monteiro, em depoimento nesse episódio.

Monteiro salienta que essas reformas que criaram ruas e praças para a sociabilidade das elites de então, dos cafés e restaurantes, expulsaram os que viviam nos cortiços e porões do centro para a periferia, para as partes mais baixas junto ao rio, enquanto as elites ficaram com seus casarões na linha do alta do morro da Independência, estabelecendo-se, desde então, pelo menos duas cidades: a do centro e a da periferia.

Bondes na paisagem da Praça XV e atual largo Glênio Peres /Banco de imagens do Projeto Monumenta Porto Alegre – PMPA/IPHAN

Próximos episódios

No segundo episódio do Desapaga POA, que começa a ser distribuído pelo Matinal Jornalismo e nos principais agregadores de podcast a partir do dia 6 de maio, o tema são os negros, negras ou negres na história. O áudio começa contando o que muita gente talvez nem sequer saiba: que Porto Alegre tinha um lugar chamado Largo da Forca, nas proximidades da Igreja das Dores, onde surgiu a lenda do escravizado Josino, o suposto causador de um atraso de cem anos na conclusão das obras desse que é um dos mais imponentes templos religiosos da cidade.

Ainda sobre os negros de Porto Alegre, o Desapaga POA revisita a história da Irmandade do Rosário, lembrando personagens históricos como José Cabelos, um dos líderes negros daquela instituição, e Aurélio Veríssimo Bittencourt, um dos fundadores do jornal negro abolicionista O Exemplo, que circulou pela primeira vez no final do século 19.

Reprodução

Dez episódios

Nesta primeira fase, o projeto vai produzir 10 episódios no formato podcast abordando temas relacionados a personagens, fatos, lendas e instituições da história de negros, negras, negres, indígenas e periferias na construção da cidade. A cada semana será divulgado um episódio com duração de mais ou menos 50min. Além de estarem disponíveis gratuitamente nos diversos agregadores de podcast (Spotify, Cast Box, Deezer, iTunes, entre outros), os áudios serão reproduzidos todos os sábados, às 9h, pela Rádio FM Cultura (107,7).

Todos os roteiros para leitura, bibliografia e uma seleção de imagens organizada pela equipe de pesquisadores do projeto estará disponível neste site, criado em parceria com o Grupo Matinal Jornalismo.

  • Vítor Ortiz é gestor cultural formado em história pela UFRGS e criador do canal Desapaga POA

A cidade se adapta aos automóveis /Banco de imagens do Projeto Monumenta Porto Alegre – PMPA/IPHAN

Agitação política no centro /1920 /Fototeca Sioma Breitmann/ Museu José Joaquim Felizardo /Banco de imagens do Projeto Monumenta Porto Alegre – PMPA/IPHAN

Os bondes elétricos e a ampliação do Mercado, já com segundo pavimento /Banco de imagens do Projeto Monumenta Porto Alegre – PMPA/IPHAN

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