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Reaprendendo com Ernesto a arte do encontro

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Reaprendendo com Ernesto a arte do encontro Gabriela Poester e Jorge Bolani. Foto: Fabio Rebelo/Divulgação

Premiado pela crítica na 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e pelo público no 23º Festival Internacional de Cine de Punta del EsteAos Olhos de Ernesto, filme da diretora e roteirista Ana Luiza Azevedo (de Antes que o Mundo Acabe), será lançado nesta quinta-feira (17/9) em drive-ins e nas plataformas Net Now, Vivo Play, Oi Play e Looke. Protagonizado pelo ator uruguaio Jorge Bolani (do sucesso Whisky), o ótimo longa é uma produção da Casa de Cinema de Porto Alegre.  

Aos Olhos de Ernesto teve sua estreia mundial em outubro de 2019 no 24º Festival Internacional de Busan, na Coreia do Sul, o maior festival de cinema da Ásia, na categoria World Cinema.  Muito bem recebido em terras asiáticas, foi considerado “ao mesmo tempo, bem-humorado, poético, sério e comovente”. Um filme que, segundo a curadora do festival, “transcende facilmente a diferença de idioma e a diferença cultural”.

Em julho deste ano, o filme ganhou as telas de cinema no Japão – depois da estreia em Tóquio, há previsão de ser exibido em 30 salas pelo país ao longo de seis meses.

Jorge Bolani. Foto: Fabio Rebelo/Divulgação

Na trama, a solidão, a amizade, o amor e as redescobertas na terceira idade permeiam a história de Ernesto (Bolani). Aos 78 anos, o personagem, ex-fotógrafo uruguaio morando em Porto Alegre há décadas, depara com uma crescente cegueira e as limitações diversas que acompanham a avançada idade. Viúvo e pai de filho único, Ramiro (Julio Andrade), que vive em São Paulo, Ernesto ressignifica sua vida e os padrões da velhice ao conhecer a jovem Bia (Gabriela Poester) – que o ajuda até mesmo a reencontrar um grande amor. Também no elenco estão o ator argentino Jorge d’Elia, como Javier, o vizinho de Ernesto; Glória Demassi, que vive Lucía, o amor uruguaio do protagonista; e as participações de Mirna Spritzer, Áurea Baptista, Janaina Kremer, Celina Alcântara e Marcos Contreras.   

 “Aos Olhos de Ernesto é um filme humanista. A melancolia, o lirismo e o humor fazem parte tanto da condução do drama como na composição das imagens e dos personagens. A mesma melancolia, lirismo e humor presentes na literatura de Mario Benedetti. A companhia fresca e afetiva de Bia faz Ernesto repensar a maneira como ele envelhece. Momentos sombrios são substituídos pelo sol e pela vida. Um filme para se defender que há muito a ser vivido, mesmo aos 78 anos”, comenta a diretora.  

Entre diversos aspectos e processos de criação do filme, a mescla de várias culturas e o uso do “portunhol” são marcas do projeto.  A proximidade cultural entre as cidades do Sul do Brasil, Uruguai e Argentina está presente na obra por meio da música, da língua e da literatura.  “É bastante comum encontrar em Porto Alegre uruguaios e argentinos que vieram fugidos das ditaduras em seus países e que aqui permaneceram, mas que seguem falando com forte sotaque, misturando as duas línguas e cultivando fortemente a cultura de seu país. A formação histórica do Rio Grande do Sul já é uma mistura dessas culturas do sul da terra. Por muito tempo pertencemos à Província Cisplatina, e isso se reflete na cultura. Estamos mais próximos da Argentina e do Uruguai do que do centro do país. Hablamos portuñol com muita facilidade”, explica Ana Luiza.  

Jorge Bolani e Jorge d’Elia. Foto: Fabio Rebelo/Divulgação

A história de Ernesto foi inspirada na vida do fotógrafo italiano Luigi Del Re. “O personagem surgiu a partir da história dele, fotógrafo italiano que vivia em Porto Alegre, e que com a idade e avanço da cegueira já não conseguia mais se corresponder com a irmã, que morava na França”, conta a diretora e roteirista. “Em homenagem a Luigi, usamos na direção de arte as suas fotos e equipamentos de filmagem para compor o universo de Ernesto e seu apartamento. Mas Ernesto não é só Luigi: é um pouco de nossos pais, e de nós mesmos”, complementa a cineasta. 

Na entrevista exclusiva a seguir, Ana Luiza Azevedo comenta mais sobre essas proximidades culturais em Aos Olhos de Ernesto, os bastidores de filmagem, a receptividade em lugares tãos distantes como a Ásia e o paralelo entre sua história e os tempos atuais: “Tivemos que aprender como romper com nossos silêncios, nossos isolamentos, tivemos que voltar a falar com os amigos pelo telefone, a descobrir o mundo através de uma tela do computador ou da televisão, de entender o carinho que há num encontro pelo Zoom ou em um recado enviado pelo celular. Quando tudo isso passar, vamos ter que reaprender a sair para a rua, também”.

Mais do que partilhar o “portunhol”, essa língua informal que aproxima as populações da região platina, tanto o clima do set de Aos Olhos de Ernesto quanto a história do filme celebram uma cultura comum que une uruguaios, argentinos e brasileiros do Sul. Comente um pouco a respeito dessa característica, por favor.

Falar sobre essa mistura das culturas destes “cantos do sul da terra”, como diria Demétrio Xavier, está na gênese do projeto. A literatura e a música destes cantos de cá têm muita coisa em comum, e talvez ainda esteja pouco presente no cinema. (Eduardo) Galeano dizia que se sentia em casa em Porto Alegre. (Depois descobri que ele vinha todo mês a Porto Alegre porque cortava o cabelo pelo método Pilomax.) E nós nos sentimos em casa quando estamos em Montevidéu. Falamos o mais perfecto portuñol com a certeza de que estamos falando español. Assim como os uruguaios e argentinos acreditam hablar portugués perfectamente. O que importa é se entender, e ter a curiosidade de descobrir e conhecer o que é produzido nesses países da América Hispânica, para os quais o Brasil esteve por muito tempo virado de costas.

Aos Olhos de Ernesto aborda uma situação bastante típica desta parte meridional do continente latino-americano: a inserção de imigrantes no cotidiano de países vizinhos. A ótima receptividade junto à crítica e, em especial, ao público dos mais diversos lugares – inclusive de países asiáticos como Coreia do Sul e Japão – comprovam a universalidade do filme, para além da especificidade do enredo. A que você credita essa empatia?

Acho que tem alguns elementos importantes que provocam essa empatia. O primeiro é a velhice. As limitações da velhice são iguais em qualquer cultura, em qualquer tempo. Há, sim, diferenças na forma de encará-la. Conversando com os críticos e jornalistas japoneses, eu disse que um dos cineastas que melhor retratou a velhice foi Ozu, e um deles me respondeu: mas ele jamais faria um final feliz. E me perguntou se era por eu ser uma latino-americana que me levava a apontar uma saída para esse momento da vida. Achei graça, mas não soube responder. Outro elemento é o “uma vez estrangeiro, sempre estrangeiro”. A história da civilização é feita de rotas migratórias, em todos os tempos. Algumas por guerras, outras pela fome… Ernesto é resultado da diáspora provocada pelas ditaduras latino-americanas. É um dos tantos personagens que deixou seu país, não para viver uma aventura, mas porque a sua vida corria risco. Alguns retornam quando a paz ou a democracia se restabelece. Outros optam pela vida de estrangeiro. E convivem com a eterna saudade. Quando chega a velhice, a vontade de reencontrar aquilo e aqueles que foram fundamentais na constituição da sua personalidade é bastante comum, às vezes provocada por uma perda.

Ana Luiza Azevedo e Jorge Bolani. Foto: Fabio Rebelo/Divulgação

Um dos destaques do filme é a ótima interação do elenco, em particular entre o veterano protagonista Jorge Bolani e a jovem atriz Gabriela Poester. Como foi construir essa cumplicidade em cena?

Uma das principais funções do diretor é a escolha do elenco. Um ator mal escalado pode acabar com o filme. Desde que eu estava escrevendo o roteiro eu pensava na Gabriela Poester para fazer o papel de Bia, e Bolani é o maior ator uruguaio em atividade. Seria um luxo trabalhar com os dois. Mas, para além de serem excelente atores, o que garantiu a interação entre eles, além do trabalho que fizemos, é o fato de serem extremamente generosos. Os dois jogam para o parceiro, querem trocar, têm curiosidade em conhecer o outro. Qualidades que parecem ser naturais a qualquer ator, mas não é assim que acontece. Já no primeiro encontro percebi que eu tinha acertado. Os dois emprestaram seus talentos aos personagens e construíram um Ernesto e uma Bia que nem eu conhecia. Esta é a parte mais divertida desse processo, quando os personagens saem do papel e surpreendem até mesmo o diretor e o roteirista.

Aos Olhos de Ernesto fala de quebrar isolamentos e aproximar pessoas por meio da palavra escrita e dialogada, do contato físico e do encontro presencial. Como você acha que o filme dialoga com estes tempos de distanciamento social?

Ernesto vivia isolado. Seu silêncio era interrompido apenas pelas visitas de Javier. E Bia rompe com esse isolamento. Ela faz ele descobrir um mundo e um universo que não faziam parte da sua vida. Ernesto reaprende a ir pra rua, descobre o vigor da poesia de uma roda de slam. Nós estamos vivendo o inverso. Fomos obrigados a nos fechar, mas, como ele, tivemos que aprender como romper com nossos silêncios, nossos isolamentos, tivemos que voltar a falar com os amigos pelo telefone, a descobrir o mundo através de uma tela do computador ou da televisão, de entender o carinho que há num encontro pelo Zoom ou em um recado enviado pelo celular. Quando tudo isso passar, vamos ter que reaprender a sair para a rua, também. E tenho certeza de que as rodas de slam vão estar mais vivas do que nunca. Por enquanto, ainda é tempo de ficar em casa.

Foto: Fabio Rebelo/Divulgação

Por falar nisso, a pandemia do novo coronavírus modificou a estratégia de lançamento do filme. Como você analisa essa nova realidade do cinema, em que as exibições e os festivais migraram para o ambiente virtual das plataformas de streaming?

É o que temos, mas certamente vai provocar mudanças na cadeia do audiovisual. Eu adoro assistir a um filme projetado numa tela grande de uma sala escura cercada de outras pessoas. Mas já faz muito tempo que boa parte do público de um filme esperava o lançamento nas TVs a cabo ou TV aberta para assisti-lo. A pandemia apenas acirrou o que já vinha se transformando. E tem o lado bom disso: quando a gente lança um filme, ele pode ser assistido em todos os cantos do país. E mais, não tem a possibilidade de um blockbuster tirar teu filme da sala de cinema, mesmo quando estava dando público. Ou, ainda, poder assistir ao Festival de Veneza sem ter que atravessar o Atlântico. Nosso desafio neste momento é entender como se faz um lançamento virtual.

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