Artigos | Marcelo Carneiro da Cunha | Série

Kate Winslet caipira

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Kate Winslet caipira HBO/Divulgação

A série Mare of Easttown é da HBO, portanto já vem com selo de qualidade altamente recomendável por todo mundo que quer séries com muito, muito pedigree e cheias de significados. Nela, Kate Winslet se aventura pelos mares dificilmente navegados da dura realidade do interior da Pensilvânia, uma região onde a indústria enferrujou e a vida só fez piorar nos últimos 50 anos. Mais: a atriz inglesa ousa enfrentar o desafio supremo de falar usando o sotaque local, o inglês profundo do condado de Delaware, a.k.a Delco, coisa de que mesmo atores americanos acham mais seguro manter distância.

Para se ver e ouvir o quanto o jeito deles falarem soa estranho para os americanos em geral, o mais famoso programa de comédia dos Estados Unidos, Saturday Night Live, fez um esquete tirando sarro da série, ou, pelo menos, do sotaque. Vale a pena dar uma olhada aqui.

Kate mergulha na sua personagem, Mare, policial em uma cidade onde todo mundo é primo de tudo mundo, ou se conhece sem necessariamente serem primos, pelo menos sabendo. A vida é dura, gente demais sofre com vícios em drogas que terminam em mortes, gente demais desiste de enfrentar tamanha dureza em troca de nenhuma compensação. O mito do sonho americano, estimados leitores, até pode ser real, mas não para tantos, e não em Delco.

Kate é muito atriz, e demonstra isso desaparecendo sob a pele sofrida de Mare. Lá pelo segundo episódio, não existe mais Kate, não exatamente. Existe Mare e para onde ela vai, quero dizer, para onde ela iria, se fosse a algum lugar. Mare está, bastante literalmente, indo a lugar algum.

Não é incomum séries policiais em que a investigação serve de cenoura, de isca, e a investigação na verdade é sobre a natureza humana refletida na fauna local. Existe um outro mito: da paz e tranquilidade das pequenas cidades. Nada mais distante da realidade. Nos lugares pequenos, a tranquilidade das águas é apenas superficial, e os conflitos estão ali, apenas mais escondidos. Basta remexer e se descobre que todo mundo é mais ou menos igualmente esquisito. Sabem Curitiba? Pois é.

O que vai surpreender, estimado leitor, é que a história se desloca lindamente sobre a investigação que Mare realiza em busca de uma garota sumida e outra garota morta é que subitamente, lá pelo episódio quatro, o que era Happy Valley vira O Silêncio dos Inocentes. Seriously. O plot sofre um twist tão violento que meu pescoço está doendo até agora. Não esperava, não sei bem o que significa, mas sei que Mare of Easttown se torna uma daquelas séries em que é melhor não se apaixonar pelos mocinhos, ou pelos padres da região, porque coisas trágicas podem acontecer com eles, e acontecem.

É sempre um prazer ver atores com A maiúsculo nos mostrando a sua cara. A maravilhosa Jean Smart faz Helen, a mãe de Mare, aquela mulher que sabe tudo que existe para saber, e ainda se diverte com a vida. Guy Pearce recuperou a memória, virou escritor e, como todos os homens da série, desejam Mare, embora ela não entenda muito bem as causas e faça tudo pra manter todos mais ou menos à distância, só que não tanta.

Mare of Easttown é uma série que se faz ver, e se você entende de inglês americano, ouvir. Delco não é tão escuro e assustador quanto a sombria região das montanhas Apalaches, onde se passa o melhor filme de todos os tempos sobre o primitivo americano, Inverno da Alma, com Jennifer Lawrence novinha e brilhante, também encarando um sotaque dos mais assustadores. Pena, pena que ela se tornou a estrela de Jogos Vorazes, aquela besteira em série. Temos ainda Amargo Pesadelo, com Jon Voight na mesma escuridão, lembram?

Toda sociedade avançada tem as suas zonas de sombra. Trafegar por elas interessante é, e talvez seja isso, junto com a Kate, o melhor de Mare of Easttown. Vejam.

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