Artigos | Marcelo Carneiro da Cunha

Sobre tigres e reis

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Sobre tigres e reis
O que os dois documentários blockbuster da Netflix, A Máfia dos Tigres (Tiger King) e Making a Murderer, têm em comum é a classe social que eles nos mostram, a classe de americanos que só terminou o ensino médio por inércia, ou desatenção do sistema educacional, e olhe lá. A turma que os americanos mais socialmente corretos chamam de redneck e os menos corretos de white trash. Feios, sujos, malvados, mas não pobres, porque uma sociedade próspera como a americana permite que todo mundo ganhe o seu pedaço de céu, mesmo que ele fique em Oklahoma, como o nosso Tiger King desse documentário. Uma das coisas que mais impressionam nesse Tiger King é que as únicas pessoas dotadas de alguma decência são os tigres. Eles se comportam com dignidade, mesmo que, sinceramente, eu tenha achado que essa dignidade toda não deveria ter evitado que eles comessem TODOS os personagens dessa tragicomédia de erros e felinos de grande porte. Se alguma coisa nos frustra, é essa acomodação por parte das massas oprimidas e engaioladas. O mundo dos documentários, como o da ficção, acaba premiando setores da sociedade com os quais os documentaristas se identificam, de alguma forma. Ou é o mundo das pessoas que se diplomaram em alguma coisa, como eles, ou o mundo da periferia injustiçada de nossas sociedades injustas, que eles lamentam e denunciam. Ou é o mundo dos políticos e suas traições, ou o mundo de idealistas que deram de frente com a inviabilidade de seus sonhos. O mundo dos documentários não entende o povo de Tiger King, e, sinceramente, nós tampouco. Quem é essa gente, deus meu? Por que o nosso King usa mullet? Mullet? E ele sabe que aquilo é um mullet e mesmo assim usa! Qualquer rei de meia pataca sabe que usar um corte de cabelo desses é a receita certa pra perder o trono em um dia bom, a cabeça em um menos bom. A nêmesis do nosso King, dona de um santuário para feras que, como não poderia deixar de ser, é tão fake quanto ela mesma, posa de meninha inocente, quando muito provavelmente transformou o ex-marido em almoço, ou jantar, dos seus tigres. O seu rival sofisticado, que mantém um outro zoológico mais chique e de inspiração hindu-extraterrestre, algo parecido com um, humm, Beto Carrero World, sequestra jovens beldades (que se deixam sequestrar) e as explora em fantasias pra lá de provocantes pra todos, menos pros tigres. Ah, ele usa um rabo de cavalo, que não é tão mau quando um mullet, mas quase. O sócio do King é um salafrário de baixo calibre de Las Vegas, o outro sócio tem um clube de striptease, e o gerente aceita contratos pra eliminar rivais do King e não os executa. E, minha gente, esses sujeitos tão autênticos quanto uma nota de três dólares têm público, de sobra, disposto a ir participar da exploração animal de quinta categoria que eles promovem, pagando, e caro, por isso. Se tem uma coisa que os Estados […]

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