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Um cara chamado Zuza Homem de Mello

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Um cara chamado Zuza Homem de Mello Foto: Carlos Calado/Reprodução

Mesmo quem não conhecia pessoalmente Zuza Homem de Mello mas já vira o jornalista e crítico musical em algum evento ou na TV, por exemplo, simpatizava com o entusiasmo e a jovialidade daquela figura. Poucas pessoas externavam com tamanha empolgação a paixão pela música. Quase nonagenário, Zuza não resistia a uma sequência de acordes inspirada e suingada e punha imediatamente o corpo a sacolejar – estivesse em pé no meio de uma palestra, na poltrona de um teatro durante um show, caminhando pela casa entre sua copiosa coleção de discos.

Mais do que melômano exaltado, Zuza era um estudioso e pesquisador da música, especialmente do jazz e da MPB. Dono de um conhecimento enciclopédico sobre o tema – e guardião de memórias preciosas de momentos cruciais da música popular do século 20 testemunhados por ele, como a fervilhante cena jazzística da Nova York de fins dos 1950 –, o crítico não se furtava a dividir lembranças, impressões e avaliações com contagiante entusiasmo, estivesse conversando animadamente com um Wynton Marsalis da vida ou sendo entrevistado por um jovem estudante para o jornal do diretório acadêmico. Qualidade inusual entre oráculos, Zuza manteve-se até os 87 anos com ouvidos abertos para os novos, escutando com atenção a produção de hoje – e não apenas celebrando e divulgando a música de qualidade já feita, nobre bandeira que também erguia com igual vigor.

Generoso, amigo dos amigos, Zuza Homem de Mello, essa casa cheia, morreu no último domingo (4/10). Sua partida abriu um rombo no coração da gente. Ficam-nos recordações calorosas dele e de sua inseparável Ercília Lobo, companheira nos últimos 35 anos e igualmente uma gentileza de criatura. Regalos como a foto acima, que reúne três gigantes do jornalismo musical brasileiro: Zuza, homenageado do 4º POA Jazz Festival em 2018, meu guru Juarez Fonseca, responsável por entregar o prêmio ao mestre na ocasião, e Carlos Calado, que clicou o encontro de titãs para o seu site.

Discípulo do venerável decano, Arthur de Faria também comoveu-se com a morte prematura – sempre o é, especialmente a dos grandes – de Zuza Homem de Mello. No domingo mesmo, assim que soube que o veterano não estava mais entre nós, o músico e pesquisador escreveu um texto sobre essa criatura especial. Reproduzimos a seguir a despedida de Arthur ao amigo e mentor Zuza. (Roger Lerina)


Por Arthur de Faria

Eu fiquei o dia todo pensando se escrevia ou não alguma sobre esse cara que, aos 87 anos, seguia tendo esse mesmo sorriso e essa mesma joie de vivre. Mas o fato é que eu nunca “convivi” tanto com o Zuza quanto nessa pandemia. Foi uma série de coisas que se encadearam.

Primeiro ele me pedindo umas informações sobre o João Gilberto em Porto Alegre pra biografia que ele terminou terça passada.

Depois eu enchendo ele de perguntas sobre o Lupicínio pra biografia que eu estou escrevendo e que, quando eu reli Copacabana, quase desisti de escrever porque as 30 páginas que tem ali sobre o Lupi valem mais do que qualquer coisa que eu vá escrever. Só que daí ele se empolgou e teve semanas em que a gente se contatou todos os dias, com ele me mandando coisas e mais coisas que achava sobre o Lupi e sugerindo outras. Cada e-mail, telefonema ou recado no zapzap era uma alegria e uma garantia de umas risadas. O Zuza era daquela estirpe de pesquisadores que não tem NENHUM ciúme do que sabe: espalha, passa pra frente, dá de graça e fácil o conhecimento adquirido, e tem alegria com isso.

A terceira coisa foi a encomenda que me fizeram de um livro para uma série sobre os grandes caras que escreveram sobre música no Brasil – e que eu negociei até conseguir ficar com o volume sobre o Zuza, claro.

Outras memórias que vêm.

Ano passado eu tentando chamar ele pra um lance – já não lembro o que era – e ele me dizendo:

– Arthur, aos 86 eu tô com a agenda lotada pros próximos oito meses. Sabe o que é? É que eu vejo meus amigos de 80 já meio quebrados e tô ainda inteiro, então quero fazer tudo o que vem pela frente!

Já no nosso último telefonema, uns 10 dias atrás, ele terminando o livro do João, me dizendo, rindo:

– Esse vai ser meu último livro. A Ercília já me fez prometer que agora chega de trabalhar, que tá na hora de descansar e passear (e a Ercília gritando ao fundo: – É isso mesmo!).

Terminou o livro terça passada.

Comemorou os projetos novos na noite passada.

Morreu dormindo hoje.

Deus, se existe, me leve assim.

No mais, dizer que eu li TUDO que o Zuza escreveu – os livros, claro –, e não tem tamanho o que eu aprendi com ele. Pra mim não tem nenhum texto melhor entre quem escreve sobre música no Brasil. Leve, coloquial, profundo, informativo, usando a vantagem de ser músico pra ajudar a esmiuçar coisas que só quem é músico tem como esmiuçar e escrevendo esse tipo de coisa de um jeito que qualquer pessoa entenda, sem precisar se músico também.

Todo mundo que escreve sobre música, escreveu nos últimos anos ou escreverá nas próximas décadas, tem seu tributo a pagar hoje. Voa, Zuza.

E eu nem falei daquele milagre que sempre me espanta: Chico Buarque, o MPB 4 inteiro, violão e percussão em volta de um microfone cantando Roda Viva no festival aquele e a gente ouve TUDO. Sempre falo nisso pros técnicos e engenheiros de som com quem eu trabalho. Qual o segredo? O cara que cuidava de toda a técnica de captação de som da Record na Era dos Festivais. Que era o mesmo cara que tinha estudado baixo com o Ray Brown, entrevistado o Charles Mingus na fase em que o Mingus tava mais arredio com jornalistas brancos – mas como resistir àquele sorriso, àquela maciez e àquela inteligência? – e aprendido os segredos da gravação e transmissão de música com os melhores técnicos da Nova York dos anos 1950.

Um cara chamado Zuza Homem de Mello.

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