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Um império de mil noites

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Um império de mil noites

Em uma noite de meio de semana no verão de 1987, um jovem entra no Ocidente – a casa noturna localizada na esquina da João Telles com a Osvaldo Aranha – para ouvir a discotecagem de Edu K, líder do DeFalla e um dos ícones da fervilhante cena musical de Porto Alegre. Seu nome é Márcio Ventura, e ele logo fica irritado ao perceber que o ídolo dá play em Toda Forma de Poder, clássica dos Engenheiros do Hawaii. Engenheiros e DeFalla tinham uma rixa que seria resolvida anos depois, mas nem mesmo a justificativa de que uma aniversariante pedira a música ao DJ poupou Edu K das reclamações do jovem fã – que azucrinou até ser autorizado a entrar na área reservada no mezanino, sob os olhares desconfiados do proprietário da casa, Fiapo Barth.

Provavelmente nenhum dos presentes lembra dessa história. A exceção é o próprio Márcio que, naquele momento, não imaginava estar no local onde, sob outra identidade, construiria boa parte de sua vida e obra. Mais de uma década depois, Fiapo ofereceria a Márcio, já conhecido como Rei Magro, três noites de sexta-feira para rechear a programação de verão da casa. Ali nascia o Ocidente Acústico. O projeto, que começou para durar apenas aquele mês, chega à milésima edição no próximo dia 5 de março, com shows da Graforreia Xilarmônica e Ultramen – bandas representativas de uma cena autoral à qual Márcio dedicou boa parte de seu trabalho. Mas entre estes três momentos – o jovem punk no Ocidente, o surgimento do projeto, e a celebração de suas mil noites – há muita história.

Desde cedo, a música definiu os caminhos da vida de Márcio. “Estava terminando o segundo grau, ninguém sabia o que fazer da vida. Só eu e mais quatro colegas de sala ouvíamos a Ipanema, que tocava bandas de Porto Alegre, e não a rádio Cidade, que era mais pop”, lembra. “Então a galera nem conhecia as bandas daqui. Já era uma espécie de bolha”. Naquela época, decidiu comprar uma guitarra e ter aulas com Carlo Pianta, guitarrista da Graforreia Xilarmônica. No mesmo período conheceu os irmãos Júlio e o Pedro Porto, que estariam na gênese da Ultramen. Pedro foi o baixista da primeira formação da Nada Público, a banda que Márcio formou em 1988. A estreia na cena seria em um show junto com os amigos da Colarinhos Caóticos no bar da Terreira da Tribo, localizado na Cidade Baixa. Além da sua participação no palco com a banda Os As, que durou apenas aquele show -, foi a iniciação de Márcio na vida de produtor, já que o evento foi totalmente organizado pelos próprios músicos.

“O Carlo Pianta emprestou o amplificador para o show. Era pesado pra cacete, carreguei a pé da José do Patrocínio até a República. Era perto, mas levou uma eternidade. Eu ia levando e parando”, lembra Márcio. “Esse show foi marcante, um aprendizado. Notei que viver disso era uma coisa muito difícil. Foi uma estreia sem eu saber que era”. A experiência trouxe também uma dura lição para o produtor novato. “Foi meu primeiro tufo. Tinha umas 30 pessoas. Mas foi um tufo pequeno, a gente só queria fazer um show, organizamos tudo e levei a pé o release na ZH e no Correio do Povo para divulgar”. Em um tempo sem internet, o material de divulgação entregue pessoalmente nas redações dos jornais era redigido à máquina de escrever.

Mesmo com o “tufo”, os membros da Nada Público – que existiu daquele show até 1997 – seguiram autoproduzindo suas apresentações com base em uma produtora “fictícia”, a Pequenos Nadas. De festas organizadas na locadora do baixista Fabriano Rocha a outras casas na zona sul da cidade, a autoprodutora levou a banda de ônibus para tocar em São Paulo, e trouxe os paulistas da Pinups, também de ônibus, para Porto Alegre.

Mais alguns tufos depois

Em 1993, junto com o baixista Fabriano Rocha e o guitarrista Lucky Flores, Márcio concebeu a Três Reis Magros Produtora. O primeiro show da empreitada seria o festival Rock da Casa, no Araújo Vianna, que ganhou seu nome pelo patrocínio do Xerox Cópia da Casa, localizado ali perto. “Pelo menos dessa vez o tufo ficou com os donos do Xerox”, lembra o já Rei Magro. O primeiro a sair da sociedade foi o guitarrista Lucky. Mesmo com apenas dois monarcas, o nome original foi mantido. Algum tempo depois, abriria as portas na rua Barros Cassal o Garagem Hermética, outro importante palco para a cena alternativa de Porto Alegre. Ali foi concebido Um Hermético Programa de Garagem, programa de auditório com esquetes, shows, e mestre de cerimônias. Em 1994, com a saída de Fabriano tanto da banda quanto da produtora, restou apenas um monarca do trio original – a partir de então, o único Rei Magro. “Segui tocando o programa de auditório, que pagou minhas contas durante um bom tempo. Era uma época efervescente na cidade. As pessoas iam no Garagem mesmo sem saber o que estava programado”, lembra.

Foi nesse clima de afirmação de uma carreira profissional que, em uma tarde qualquer, o destino levou Márcio à Osvaldo Aranha, onde foi parado pelo amigo Alex Sernambi, a quem considera um “padrinho indireto”. Este o indicou para auxiliar na produção de um projeto que ocupava os finais de tarde de domingo no Ocidente, chamado Hip Hop Café. Foram poucas edições, mas o projeto colocou o Rei em contato com o ambiente onde agregaria mais súditos.

Após ficar de 1994 a 1996 fechado pela eterna disputa entre o volume do som da casa e as reclamações da sua vizinhança, o Ocidente – que apenas em 2018 conseguiu seu alvará de funcionamento – buscava retomar suas atividades noturnas. “A prefeitura não nos fechou, mas proibiu o som. E o Ocidente sem som é nada”, lembra Fiapo Barth, o proprietário, que havia praticamente desistido de retomar as atividades noturnas. A mudança de ideia veio em março de 1997, quando uma festa para os 15 anos da sua filha Júlia agregou frequentadores saudosistas e jovens empolgados pela recuperação do espaço noturno. “Foi uma comoção tão grande por termos uma festa de novo no Ocidente, que resolvi reabrir”.

Naquele ano, festas de aniversário ocuparam os finais de semana do bar, com os aniversariantes escolhendo seus próprios DJs. Porém, uma noite que teve o monopólio de Banda Eva nos alto-falantes levou Fiapo a decidir pela retomada do controle no som da casa. Embora eclético, o espaço deveria ter sua personalidade respeitada.

Foi assim que, quando Fiapo ofereceu as três últimas sextas-feiras de janeiro de 1998, o Rei Magro não titubeou, mas aceitou sem saber que ali estava dando início a um império que duraria, ao menos, mil noites. O Ocidente Acústico, que começou para ocupar apenas três datas – 16, 23 e 30 de janeiro – foi assim batizado como uma estratégia para não comprometer a retomada das atividades no espaço. Fiapo e Márcio concordaram que nomear o projeto como “Acústico” deixaria clara a intenção de fazer shows menores, em uma casa pequena.

O primeiro show do projeto foi também a primeira apresentação dos Cowboys Espirituais, espécie de supergrupo que reuniu músicos de renome na cena local: Márcio Petracco, Frank Jorge e Julio Reny. “O bar ficou lotado”, recorda o Rei Magro. “Mas era uma incógnita. Por mais que os três já tivessem uma trajetória, era uma banda nova”.

Frank Jorge lembra que a intenção do trio era apenas registrar um pequeno material e fazer um show. Júlio havia se separado de uma namorada e, para reconquistá-la, quis gravar um compacto como presente. “Cowboys foi um projeto que se juntou para gravar duas músicas e acabou virando uma banda, talvez um cacoete oitentista”, brinca Frank, que vê o Ocidente Acústico como um espaço que conquistou sua importância para as bandas autorais da cidade. “Quando tocamos na primeira edição, não fazíamos ideia do quê ele se tornaria. Para muitas bandas é algo emblemático tocar no Ocidente, onde tocaram Cascavelletes, Julio Reny, Nenhum de Nós”, avalia o músico.

Como a Graforreia é atração confirmada para o evento de celebração, Frank terá a honra de ser o músico que tocou na primeira e na milésima edição do projeto. “Conheci o Márcio desde muito antes de ele ser o Rei Magro”, lembra Frank. “Ele tem uma convicção artística muito importante, ajuda a movimentar nosso cenário de indústria criativa. É uma sorte termos um cara assim na cidade.”

Quando as três edições propostas inicialmente se completaram, Fiapo sugeriu a continuidade do Ocidente Acústico, que assumiu as quintas-feiras ao longo de praticamente um ano, antes de mudar para as quartas-feiras. “Ali eu poderia ter desistido”, lembra Márcio. O grande inimigo nas quartas-feiras era o futebol, que reduzia drasticamente o público frequentador. Apesar disso, foi uma noite de quarta-feira de 2001 que trouxe um dos momentos mais especiais das quase mil edições do projeto. Discreta e misturada entre o pequeno público presente, Cássia Eller – que estava na cidade para um show no Teatro do Sesi – esperou o fim da apresentação da noite e chamou sua banda ao palco para oferecer uma canja inesquecível. “Ano passado, fiz um show com o Chico, filho da Cássia, e pude dizer: olha, tua mãe deu uma canja aqui.”

Mesmo assim, quando as noites de quinta foram novamente oferecidas, o Rei não hesitou. A partir daí o “Ocidente Acústico” ganhou aspas, conforme o receio em usar guitarras elétricas desaparecia. A proposta era lembrar os acústicos da MTV, famosos nos anos 90. “Criamos um textinho no release, falando sobre o clima intimista, o fato de não ter palco. Isso porque o projeto já era conhecido pela galera, se eu mudasse o nome teria que começar do zero. Mas não imaginava que duraria tanto tempo”, confessa Márcio, que credita a Fiapo a longevidade do projeto – o mais antigo da casa.

Ao longo dos 22 anos de Ocidente Acústico, o cenário musical mudou muito. Apesar da intenção de manter o projeto 100% dedicado à música autoral, desde muito cedo os tributos começaram a preencher algumas datas. A morte de Tim Maia, em março de 1998, trouxe a ideia da formação de um banda tributo ao artista, inicialmente com integrantes da Black Master. O sucesso garantiu lugar cativo no calendário e faz com que Tributo a Tim Maia seja o show mais apresentado na história do Ocidente Acústico. Tonho Crocco, que participou de diversas dessas apresentações, também esteve no Ocidente Acústico em carreira solo e, outras tantas vezes, com a Ultramen – que dividirá com a Graforreia o palco da milésima edição do projeto.

O músico conhece o Rei Magro desde a época em que ambos frequentavam o Porto de Elis, um dos pontos quentes da cena musical da cidade nos anos 1980 e 1990. “A banda dele, a Nada Público, fazia música em formatos experimentais, misturando com história em quadrinhos e outras coisas. Acho que o Rei Magro é um alter ego do Márcio. Ele gosta de quadrinhos, então assumiu essa identidade secreta”, brinca o vocalista. “Apesar de ter se tornado o Rei Magro, sempre foi um cara simples, que inclusive faz alguns projetos mais rentáveis para sustentar outros mais alternativos”, elogia Crocco.

Além de Graforreia e Ultramen, Márcio fez questão de chamar para a celebração das mil edições nomes ligados à extinta rádio Ipanema. “A Ipanema tinha um papel importante para todo mundo nesse período. É uma questão emotiva, eu tinha que convidar alguém da rádio para botar o som, o que traz toda uma simbologia”, explica Márcio, que acionou Cláudio Cunha e Katia Suman para assumir a discotecagem da milésima noite. “Sempre acreditei no trabalho do Márcio. Eu e o Alemão Vitor Hugo também sempre apoiamos suas divulgações dentro da Ipanema. Fico orgulhoso de ter feito e seguir fazendo parte disso”, celebra Cunha, que vê no amor e apego do Rei Magro à arte e à música a razão para sua longevidade no ramo. “Talvez outra pessoa não conseguisse levar adiante por tanto tempo. Não é um empresário parasita, um cara que investe no que não acredita. Muitas vezes a crença dele no artista é até maior que a possibilidade de ter lucro financeiro com o evento.”

Katia Suman nota que muitas das pessoas que trabalhavam no mesmo nicho que Márcio nas últimas décadas não estão mais envolvidas com produção cultural. “Ele se manteve fiel à concepção de trabalhar para promover a cultura e fazer esse intercâmbio, trazendo bandas e promovendo a cena local fora do mainstream”. Para ela, a celebração da milésima noite não tem a ver com nostalgia, mas com um ambiente que fomentou a vida cultural na cidade. “Não sou nostálgica do tipo ‘quero reviver os anos 80 e 90’, mas tenho uma ligação com Ultramen e a Graforreia. São bandas de uma cena que sempre se beneficiou do fato de a Ipanema mostrar o trabalho das bandas locais”, explica a apresentadora.

É claro que o reinado não se construiu exclusivamente de belos momentos. Como quando a Cachorro Grande fazia a terceira apresentação de uma pequena temporada no Ocidente Acústico, e decidiu, por assim dizer, quebrar tudo – de instrumentos às janelas do bar. “Ali achei que tinha acabado tudo”, lembra Márcio, que via não só seu emprego comprometido, mas o possível fim de um espaço onde muitas bandas e músicos se apresentavam. O produtor da banda pagou os estragos, mas o episódio inviabilizou a presença dos seus integrantes no Ocidente por um bom tempo.

E se o Rei Magro de 2020 pudesse entrar em uma DeLorean e voltar no tempo? “Se eu fosse assistir àquele primeiro show em 1988, diria ao Márcio jovem: Pula fora!’” Na época, a ideia era fazer faculdade e trabalhar com jornalismo esportivo – “não ia dar certo, sou muito gremista e ia atrapalhar” -, mas hoje o Rei se contentaria em ter “qualquer coisa na praia”. “Tenho uma vida simples e bacana por fazer o que gosto, mas a vida cobrou demais. É um trabalho solitário. Tem um lado bom: sei lidar com isso”. Pelo seu trabalho com o Ocidente Acústico e com a Segunda Maluca – outro projeto pessoal que já ultrapassou os 20 anos trazendo bandas como Mundo Livre S/A e Los Hermanos para shows históricos -, Márcio Ventura foi agraciado com menção especial no Prêmio Açorianos de 2009.

Que rei sou eu?

Entre tantas bandas que passaram pelo palco do projeto, o Rei Magro lamenta o fim de algumas que fizeram apresentações marcantes, caso de VideoHits e Superguidis, que “são mais ou menos da geração do Ocidente Acústico”. Mas Márcio vê uma “involução” na tradicional cena da cidade. “Não vejo uma cena autoral neste momento em Porto Alegre, ao menos no rock. Se vê muita banda cover e até de MPB autoral, mas a mudança foi grande, pois sempre existiu uma cena forte aqui.”

Tonho Crocco enxerga uma certa preguiça do público, que parece só sair de casa para assistir a artistas conhecidos. “O Ocidente vai lotar com Graforreia e Ultramen, mas o pessoal deveria ter mais vontade de conhecer coisas novas, correspondendo ao esforço do Rei Magro”, salienta. “Talvez não seja suficiente, talvez faça falta uma gravadora, uma rádio tocando essas músicas independentes, ou o ingresso é muito caro. Mas a gente dava um jeito na nossa época”, explica o vocalista. Para Márcio, as explicações para isso também estão na crise política e econômica do país. “Parece que uma nuvem pairou, não se dissipou e ficou ainda mais carregada depois das últimas eleições”, lamenta. Mas, após se lamentar, Márcio não tem dificuldade para nomear Quarto Sensorial, Alpargatos e Musa Híbrida como ótimas novidades que passaram recentemente pelos palcos do Ocidente Acústico.

A noite da quinta-feira, 5 de março de 2020, será a milésima de uma série que, entre muitos shows com lotação esgotada e diversos “tufos”, já levou – em uma estimativa absolutamente desprovida de rigor científico – mais de 100 mil pessoas aos corredores do Ocidente. Conforme a efeméride se aproximava, a ideia do Rei era finalizar o projeto na sua milésima edição. Mesmo assim, a agenda de 2020 já está praticamente cheia. “Eu estou muito emocionado com as mil edições”, confessa Márcio. “Não vou chegar a 30 anos com o projeto. Não me vejo fazendo isso até lá. É um ciclo se encerrando. Como diz Belchior, o novo sempre vem. Se não vier, azar de Porto Alegre. Mas tem gente nova aí, já está vindo.”

Assim, tal qual um herói dos quadrinhos, o rei usa toda sua nobreza para manter vivo o reino que construiu. “O problema de gostar muito do que se faz é esse: tu fica puto da cara, mas daí um show é muito bom. Então tu dá um jeito de seguir. É uma merda, mas é uma merda boa. É um vício. É amor, na verdade. Mas também é loucura.”

Enquanto houver súditos, vida longa ao Rei Magro.

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