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Uma greve de 30 anos

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Uma greve de 30 anos
Uma das principais características dos documentários de Maria Augusta Ramos é a aposta na eloquência das imagens e das falas de seus personagens, para além de comentários que venham a ser acrescidos pela realizadora. Muito da contundência de Justiça (2004), Juízo (2008) e Morro dos Prazeres (2013), espécie de tríptico que retrata o sistema judiciário e policial brasileiro contemporâneo, repousa justamente nessa abstenção – relativa e apenas em parte, por óbvio – da diretora em interferir de forma explícita com suas considerações a respeito da realidade que registra. Já em O Processo (2018), filme selecionado para o Festival de Berlim e que recupera em imagens inéditas e reveladoras os bastidores do impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff, a documentarista permite-se comentar o que é mostrado em cena com textos informativos que costuram o desenrolar dos episódios – e esse excesso de opinião resulta às vezes reiterativo, diluindo um tanto a seca robustez da obra.  Em Não Toque em Meu Companheiro (2020), novo longa de Maria Augusta – que será tema em outubro de uma mostra na Cinemateca de Toulouse, na França –, a palavra volta a ser privilégio de quem vivenciou o que está sendo relatado. O filme acaba de estrear diretamente nas plataformas de streaming NetNow, Oi Play, Vivo Play, FilmeFilme e Looke. Não Toque em Meu Companheiro reconstrói uma luta histórica e de solidariedade do sindicalismo brasileiro: em 1991, cerca de 35 mil trabalhadores da Caixa Econômica Federal se mobilizaram pela reintegração de 110 colegas demitidos após uma greve da categoria, pagando seus salários durante um ano até sua readmissão. Ao reencontrar esses trabalhadores hoje em São Paulo, Belo Horizonte e Londrina – cidades onde estavam os bancários demitidos –, o filme traça um paralelo entre o período Collor, com suas medidas severas de redução do Estado, e o atual governo, que inaugura um novo ciclo neoliberal no país. “Através de Jair Ferreira, da Fenae (Federação Nacional das Associações do Pessoal da Caixa Econômica Federal), fui apresentada a essa história incrível de solidariedade dos trabalhadores da Caixa em 1991. Acho que é fundamental contar essa história neste momento pelo qual estamos passando no Brasil e no mundo, no tocante às relações de trabalho e neste cenário de crescente redução de direitos”, afirma a diretora. A reflexão sobre as relações atuais no mundo do trabalho é talvez o principal destaque de Não Toque em Meu Companheiro – frase que foi um dos lemas do movimento de 1991. O filme reúne em grupos esses antigos colegas de luta sindical, que revisitam as circunstâncias e consequências daquela mobilização e traçam paralelos entre a política econômica e social do governo federal há quase 30 anos com a cartilha administrativa da atual gestão. A partir desses comparativos evidencia-se nas falas dessas testemunhas a longa construção engendrada nas últimas décadas de interpretações distorcidas, estigmatizações e depreciações da coisa pública e de seus servidores: a acusação de suposta ineficiência do Estado e sua máquina, a cristalização da visão de que o contribuinte sustenta um funcionalismo inepto com altos salários e privilégios, a cobrança por desempenho lucrativo e competitivo dos bancos de […]

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