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A paz virá ainda nesta vida?

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A paz virá ainda nesta vida? Foto: Pablo Baião/Divulgação

Uma favela no Rio de Janeiro, a cidade colombiana de Medellín e o Estado mexicano de Michoacán. Esses são os cenários onde o documentário brasileiro América Armada registra o trabalho de três ativistas que enfrentam a violência armada que oprime as comunidades locais. O filme estreia nesta quinta-feira (11/3) nas plataformas NOW, Vivo Play e Oi Play, sendo posteriormente exibido na Globo News, no dia 25 de abril

Dirigido por Alice Lanari e Pedro Asbeg, América Armada acompanha a luta diária de três militantes. Raull Santiago é um jovem que nasceu e cresceu no Complexo do Alemão. Membro do Coletivo Papo Reto, munido de um celular e muita determinação, transmite em lives as ações e abusos da polícia em sua comunidade.

A colombiana Teresita Gaviria perdeu o filho assassinado há 18 anos, e desde então integra o grupo Madres de La Candelária, que promove o encontro entre outras mulheres que estão na mesma situação que ela com os assassinos presos de seus filhos e filhas. Já o mexicano Heriberto Paredes é um jornalista que mesmo ameaçado de morte acompanha a luta de grupos de autodefesa compostos por indígenas que resolveram pegar em armas para defender seus territórios e suas vidas contra o narcotráfico. 

Foto: Pablo Baião/Divulgação

Rodado em 2017, América Armada ganha uma atualidade ainda maior neste momento em que o presidente brasileiro Jair Bolsonaro altera decretos para ampliar o acesso às armas e munições. Segundo o diretor Pedro Asbeg, a situação do Brasil “tem uma série de semelhanças com países e povos com quem, infelizmente, troca e aprende muito menos do que poderia e deveria. Em relação ao tema central do filme, acredito que a principal descoberta tenha sido a confirmação de que a violência é um fenômeno regional, que afeta todos os países da América Latina, em particular os três em que filmamos: Brasil, Colômbia e México”.

“O América Armada nos ajudou a compreender o fenômeno que estamos vivendo no Brasil – de militarização da sociedade civil – como algo que vai bem além do nosso país, e que está intrinsecamente ligado ao que vem ocorrendo em outros países da América Latina nos últimos anos”, explica a diretora Alice Lanari.

A gênese do longa se deu em 2014, quando os realizadores buscaram entender quais eram as semelhanças e as diferenças entre o que estava acontecendo no México, com o surgimento das autodefensas, e no Brasil, com a expansão das milícias no Rio de Janeiro. Mais tarde, a Colômbia entrou no filme como um matiz à situação dos outros dois países. “Foi assustador perceber que aquilo que estava acontecendo no Brasil durante as filmagens, e que só se aprofundou depois disso, tinha e tem muitas semelhanças com o que já aconteceu – com resultados trágicos – em outros países latino-americanos”, conta Lanari.

Foto: Pablo Baião/Divulgação

A pesquisa começou em 2016, quando os documentaristas e o diretor de fotografia, Pablo Baião, viajaram para os países onde América Armada seria filmado. Ao longo do ano, mergulharam nos processos em que aquelas pessoas estavam vivendo para em 2017 voltarem com a equipe completa e registrarem as atividades desses ativistas durante dois meses. 

“Nosso primeiro dia era dentro da casa do Raull, mas ele ligou e perguntou se estávamos preparados para acompanha-lo com um morador que havia feito uma denuncia gravíssima. Achávamos que estávamos preparados. E foi um susto! Então o primeiro dia de filmagem já foi cravado pelo inesperado, e foi essa abertura ao inesperado que nos guiou. Hoje sabemos que justo por termos nos aprofundado muito na etapa de desenvolvimento do filme, conseguimos nos equilibrar entre uma atitude de nos deixarmos levar, mas sem perdermos o prumo”, recorda a cineasta.

América Armada teve sua primeira exibição no 51º Festival de Brasília, no ano passado, projetado como hors concours na noite de encerramento, e desde então participou de festivais no México, Cuba, França e Etiópia, entre outros países.

Foto: Pablo Baião/Divulgação

Cineasta formado em Londres pela University of Westminster, Pedro Asbeg trabalha desde 1997 como diretor e editor de documentários para o cinema e a televisão. Em 2011, estreou como diretor de longas-metragens com o drama Mentiras Sinceras. Em seguida, lançou os documentários futebolísticos Democracia em Preto e Branco (2014) e Geraldinos (2015).

Alice Lanari é produtora associada de Democracia em Vertigem (2019), filme dirigido por Petra Costa e indicado ao Oscar de Melhor Documentário em 2020. Seu segundo longa documentário, Nunca Mais Serei a Mesma – filmado em Honduras, Argentina, Brasil e México –, está em fase de pós-produção.

Na entrevista a seguir, os diretores comentam como foi o processo de filmagem de América Armada, comparam as situações dos três países mostrados no longa sob o ponto de vista da violência e alertam para um conturbado cenário social e institucional no futuro próximo no Brasil com a flexibilização do porte de armas. “Considerando esse poderio bélico, somado ao apoio maciço das polícias militares a Bolsonaro, pode-se prever um embate violento em caso de contestação do resultado das próximas eleições presidenciais e, no pior dos cenários, uma guerra civil”, prevê Pedro Asbeg.

Como vocês chegaram aos três personagens do filme?

Alice Lanari – O primeiro trabalho, dentro do processo de desenvolvimento do filme, foi entender qual era o perfil dos personagens que queríamos encontrar, porque falar da violência armada na América Latina é um campo muito vasto. Então, fazer esse recorte foi o primeiro passo, e vimos que estávamos buscando pessoas que lutavam contra a violência armada, mas se utilizando de outros tipos de armas, que não as armas de fogo. Com esse entendimento, passamos à segunda etapa, de pesquisa de personagens. A pesquisa contou com profissionais incríveis, a Natasha Neri e o Rafael Soares no Brasil, o Octavio Céspedes na Colômbia e no México uma série de contatos, mas especialmente a fotógrafa Valentina Siniego, que na época trabalhava na organização Artículo XIX, e que nos fez chegar ao Beto Paredes. 

Como foi construída a relação de confiança com esse trio de ativistas?

Alice – Fizemos uma primeira viagem de pesquisa, já com câmera e com o nosso diretor de fotografia. Viajamos os três para a Colômbia e o México, mas também no Brasil, onde conhecemos realidades, cenários e pessoas que tinham em comum o fato de lutarem contra a violência armada com outro tipo de armas, que não as armas de fogo. Foi nessa época que conhecemos nossos personagens, e a partir desses primeiros encontros começamos a trocar bem de perto com eles. Um ano depois, voltamos para filmar, e passamos duas semanas com cada um acompanhando o dia a dia, incorporados à rotina e às agendas deles. O processo de confiança se deu porque, apesar de estarmos apostando nesse tipo de registro documental que é o da observação, nós passamos um ano nos mostrando também para eles, era uma relação em que não só estávamos muito curiosos com os processos deles, mas também nos abríamos, contávamos quem nós éramos, quais eram os nossos sonhos, nossos planos. Acredito que foi o processo de desenvolvimento, de termos feito o filme com calma, que trouxe a confiança de todos, e o que mantém até hoje como uma parceria, com Beto, Raull e Teresita.

Vocês registraram situações muito tensas de iminência de conflito, especialmente no Rio de Janeiro. Qual foi a sensação de estar documentando esses episódios no calor dos acontecimentos? Você acha que a presença da equipe de filmagem teve influência no desenrolar desses eventos?

Alice – A sensação de estar documentando situações agudas como as que a gente viveu é uma mistura tremenda: por um lado havia a certeza de que aquilo que estávamos filmando era um material riquíssimo para o filme, mas por outro, a adrenalina de perceber que por mais que estivéssemos preparados para alguma situação como a que vivemos no Rio, com protocolos de segurança dentro da equipe, estava nítido que havia alguns elementos que fugiam completamente ao nosso controle, com os agentes de segurança do Estado absolutamente exaltados, agindo na ilegalidade, e armados até os dentes. Um dos nossos assombros é que, mesmo diante de uma câmera grande, de cinema, a PM carioca ali presente não se intimidou. Talvez por estarem absolutamente acostumados com a impunidade de seus atos. Eles nos filmaram também, com celulares, e certamente “puxaram” a nossa ficha. Mas nada disso impediu que a invasão das casas dos moradores do Complexo do Alemão tenha permanecido por semanas. Posteriormente, o comandante da UPP responsável por aqueles crimes no Complexo foi condenado. E certamente o trabalho de mobilização e denúncia feito pelo Coletivo Papo Reto foi diretamente responsável por essa decisão da justiça.

Foto: Pablo Baião/Divulgação

Vocês chegaram a filmar cenas que ficaram de fora do filme por razões de segurança? Em caso positivo, poderia citar algum exemplo?

Alice – Realmente, motivados por questões de segurança, não deixamos nada que tenhamos filmado fora da edição. O que sim tivemos que estar atentos é para uma série de coisas que não podíamos filmar, para não expor os nossos personagens que já eram ameaçados de morte por causa de suas lutas diárias. A fachada da casa de Beto e Teresita, a entrada da casa de Raull, porque sabíamos que não podíamos trazer nenhum tipo de informação para o filme que depois os expusesse a um risco ainda maior.

O que mudou na questão da violência urbana e sua relação com as forças policiais e milicianas, especialmente no Brasil, de 2017, quando América Armada foi rodado, para cá?

Pedro Asbeg – Acho que o que mudou primordialmente foi a força da milícia. Ela fica cada vez mais forte, mais preparada e mais difícil de controlar. A chegada de uma família de políticos com estreitos laços com milicianos só torna o combate aos paramilitares mais difícil e improvável.


O jornalista mexicano Heriberto Paredes fala no filme de que a América Latina é vítima de um “capitalismo criminoso”, em que a violência virou uma espécie de commodity. Você poderia comentar essa ideia, por favor?

Pedro – A ideia do Beto é de que, enquanto muitas pessoas morrem, algumas ganham dinheiro. A violência rende muito, seja pela venda de armas (legal ou ilegalmente) ou pela cultura do medo, que vende a ilusão de segurança em forma de grades, alarmes, câmeras e tudo mais. Além disso, o ciclo do dinheiro gerado pela violência é eterno, seja pelo fato de ser incentivado pela poderosa indústria bélica ou porque quem morre é quase sempre a população mais pobre.


De que maneira a flexibilização do porte de armas e o estímulo do governo ao armamento da população estão afetando o panorama social e político do Brasil?

Pedro – A equação é simples: quanto mais armas circulando, mais mortes. Além disso, é fácil ver que uma parcela dos que estão se armando não fazem isso por coleção ou mesmo autoproteção. A intenção é a formação de milícias civis armadas como vemos no México e nos EUA. Considerando esse poderio bélico, somado ao apoio maciço das polícias militares a Bolsonaro, pode-se prever um embate violento em caso de contestação do resultado das próximas eleições presidenciais e, no pior dos cenários, uma guerra civil.


Como você vê o Brasil dos próximos anos?

Pedro – Com tristeza, com raiva, com pouca esperança e com muitas mortes.

Foto: Pablo Baião/Divulgação

América Armada: * * * 

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Assista ao trailer de América Armada:

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