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Ana enfrenta o luto e o mistério em “Despedida”

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Ana enfrenta o luto e o mistério em “Despedida” Pátio Vazio/Divulgação

Durante o feriado de Carnaval, Ana (Anaís Grala Wegner) viaja com a mãe (Patricia Soso) para o interior do Sul do Brasil para o funeral da avó (Ida Celina). À noite, a menina de 11 anos vê o fantasma da avó entrando na floresta perto da casa da família – e descobre um mundo de fantasia e mistério.

Esse é o mote do longa Despedida, que estreou recentemente na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. O filme integrou a Mostra Brasil do evento, ao lado de outras 33 produções, e deve entrar em cartaz nos cinemas brasileiros em 2022. 

Escrito e dirigido por Luciana Mazeto e Vinícius Lopes, Despedida foi rodado em Pelotas e Viamão, entre fevereiro e março de 2019. O elenco dessa imaginosa fábula infantil sobre autodescoberta e amadurecimento inclui ainda Sandra Dani, Marielly da Cruz, Kiko Ferraz, Silvia Duarte, Clemente Viscaíno, Frederico Machado e Kauã Machado

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O projeto também participou dos encontros de coprodução Plataforma Lab, em 2016, e Brasil CineMundi, em 2017, onde recebeu uma menção honrosa do júri. Despedida é o segundo longa-metragem da dupla de realizadores gaúchos, que estreou no formado com Irmã, lançado em 2020. 

Na trama de Despedida, para resolver uma antiga desavença familiar, Ana precisa recuperar o mundo imaginário de sua mãe há muito esquecido, abandonado na floresta onde enterrou sua infância. No caminho da pequena protagonista, surgem bruxas, vilões da fábula, criaturas estranhas e um cão selvagem que guarda a passagem para esse mundo fantástico. 

Irmã, primeiro longa dos porto-alegrenses Luciana Mazeto e Vinícius Lopes, teve sua estreia mundial em no 70º Festival de Cinema de Berlim – o filme integrou a mostra Generation Kplus da Berlinale em 2020. Na entrevista a seguir, os talentosos jovens diretores e roteiristas falam de Despedida, do trabalho com o elenco infantil e sobre a importância da imaginação na formação das crianças. “O ‘era uma vez’ pode ser uma ferramenta muito poderosa para nos ajudar a entender a realidade. No Despedida, a gente usou a fantasia para criar simbologias que nos ajudassem a tratar de temas complexos como a morte, o luto, o ressentimento. Essa fantasia, que no filme nasce do Carnaval, da alegria, se opõe ao luto e à tristeza, transformando eles e abrindo possibilidades de reconciliação e recomeço”, explica Luciana.

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Como surgiu a história de Despedida e foi desenvolvido o roteiro do filme?

Vinícius Lopes – O Despedida começou em 2014, ainda como um curta-metragem. A gente vinha desenvolvendo, na época, alguns trabalhos mais documentais e experimentais, e quando pensamos em ideias pra ficção, a gente sentiu vontade de explorar nossas memórias de infância, e lidar com histórias de tratassem de temas relativos ao processo de amadurecimento partindo da fantasia, que pra nós também era uma forma de experimentar mais livremente na linguagem dos filmes que a gente queria fazer. E, quando começamos a explorar essas ideias, o Despedida foi ganhando mais corpo, o universo do filme foi crescendo, e a gente acabou vendo que tinha um chão fértil pra criar uma história mais complexa, que acabou se tornando esse longa-metragem. O roteiro passou por um longo desenvolvimento e participou do Plataforma Lab e do laboratório do Prodav 04 do FSA (Fundo Setorial do Audiovisual), com muitas consultorias que foram essenciais pra gente conseguir não só aprofundar as camadas da história, mas também tentar entender as dinâmicas e ritmos próprios de um filme de fantasia como esse. A gente teve a sorte de criar esse projeto em um momento em que o audiovisual no Brasil estava não só forte, por conta das políticas públicas, mas também muito preocupado com a criação de obras para o público jovem, e conseguimos garantir a produção do filme através do edital SAV/MINC/FSA 02/2015, específico pra esse público, o que foi uma oportunidade maravilhosa. A gente espera que isso volte no futuro.

Revelada em Irmã, a jovem atriz Anaís Grala Wegner demonstra mais uma vez talento e segurança em cena. Como foi a escolha do elenco, especialmente o adolescente e infantil?

Luciana Mazeto – A escolha do elenco do filme foi um processo incrível pra nós. A experiência com a Anaís no nosso primeiro longa foi maravilhosa, e quando começamos a escrever o Despedida, ela já era a Ana na nossa cabeça, porque, além de ter uma entrega muito grande e muito talento, ela tinha a energia perfeita pro papel. Além da Anaís, a Patricia Soso, a Sandra Dani e a Ida Celina eram atrizes que a gente também conhecia e imaginava nos papéis delas, e foi uma alegria imensa elas terem aceitado embarcar nessa aventura com a gente. E quando surgiram os nomes da Silvia Duarte, do Clemente Viscaíno e do Kiko Ferraz, eles encaixaram perfeitamente e trouxeram novas dimensões pros personagens que a gente tinha criado. O restante do elenco infantil era uma preocupação pra nós, mas a escolha acabou sendo um processo bem fácil. Na primeira vez que encontramos a Marielly da Cruz, o Frederico Machado e o Kauã Machado, a gente tinha certeza que tinha encontrado nossos personagens. E a Mariah Padoin, com quem a gente já tinha trabalhado antes, veio pra fechar esse núcleo em uma participação muito especial. O núcleo infantil do elenco também encheu o set de filmagem de energia, e trouxe um clima todo especial pras gravações.

Despedida tem várias sequências em animação e utiliza diversos efeitos visuais especiais. Comentem sobre a importância desses recursos técnicos no filme, por favor.

Vinícius – O filme acontece em um universo mágico e a gente queria experimentar diversas técnicas para criação dessa fantasia. Desde que começamos a estudar a concepção visual do filme, a gente tinha vontade de trabalhar principalmente com efeitos especiais práticos em composição com efeitos digitais, pra construir esse universo de uma forma mais palpável, fugindo da construção digital massiva que vemos em algumas obras recentes voltadas para esse público. A animação 2D feita a mão, o stop motion, os fantoches, a construção de cenários físicos, eram técnicas que a gente queria usar desde o roteiro. Foi uma longa pesquisa junto com a equipe de arte, foto e pós pra conseguir inserir todas essas técnicas de maneira orgânica no filme, e fazer com que elas integrassem um mesmo universo. Pensando especialmente no público infanto-juvenil, era muito importante pra todos nós que esse mundo mágico fosse rico, instigante, para dar suporte à jornada de descoberta da protagonista. A fantasia precisava estar ao toque dos dedos de Ana, e a um passo de engoli-la.

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O filme parece ser direcionado especialmente para o público infantil, mas vários temas e eventos têm um perfil mais adulto e mesmo bastante sombrio. Como vocês lidaram com esse registro híbrido em Despedida?

Luciana – Com certeza o público infanto-juvenil era o nosso foco principal, e a gente se preocupou em criar uma narrativa que pudesse se comunicar e atrair esse público – através da fantasia, da aventura e do mistério –, mas sem deixar de construir uma narrativa complexa, que não subestimasse a capacidade de compreensão e a imaginação das crianças, e propusesse uma experiência um pouco diferente, que as desafiasse. Obras infantis que tratam de temas difíceis do processo de amadurecimento nos interessam muito, e a gente acredita que elas são muito importantes pra ajudar as crianças a entender momentos difíceis que a gente enfrenta enquanto cresce. O “era uma vez” pode ser uma ferramenta muito poderosa para nos ajudar a entender a realidade. No Despedida, a gente usou a fantasia para criar simbologias que nos ajudassem a tratar de temas complexos como a morte, o luto, o ressentimento. Essa fantasia, que no filme nasce do Carnaval, da alegria, se opõe ao luto e à tristeza, transformando eles e abrindo possibilidades de reconciliação e recomeço. Essa segunda camada do drama familiar, que dá o suporte emocional pra fantasia, também foi pensada como uma linha que pudesse dialogar com o público adulto. Mas a gente se preocupava muito em não tornar essa camada um fator que afastasse as crianças da história, e inclusive partimos da opinião de algumas crianças que assistiram ao filme durante a pós-produção pra chegar no corte final. E a nossa surpresa foi que essas crianças não só acessaram, mas se interessaram bastante também por essa camada da história, mesmo com todas as suas complexidades. 

A história apresenta personagens mulheres de distintas gerações em situações tanto de conflito quanto de cooperação diante das adversidades da vida. Como foi desenvolvido esse aspecto da dimensão feminina no roteiro?

Luciana – Nos nossos dois primeiros longas, o protagonismo feminino foi uma escolha muito natural pra nós, e vem das nossas experiências de infância, rodeados de mulheres muito fortes e de personalidades complexas. No Despedida, a gente apostou em mulheres não só como protagonistas, mas também na posição de antagonismo, e os conflitos que movem a história partem delas. A gente queria explorar a interação entre essas mulheres de maneira mais aprofundada, e trabalhar as diferenças geracionais e pessoais entre elas. Foi uma escolha bastante natural pra nós, mas não deixa de ser uma provocação também. Por mais que o olhar sobre as mulheres venha mudando bastante no cinema, a gente ainda vê personagens femininas relegadas a funções secundárias e até acessórias em muitos filmes. A gente foi no sentido oposto, e foi uma experiência gratificante trabalhar com todas essas atrizes incríveis nos principais papéis da nossa história.

Que referências artísticas vocês identificariam em Despedida?

Vinícius – A criação do universo fantástico do Despedida se inspirou muito nesse grande imaginário que a gente construiu assistindo a filmes e lendo livros de fantasia na infância, então mesmo obras que não foram referência direta pro filme acabam povoando ele de maneira subjetiva. Mas quando estávamos escrevendo o roteiro, a gente retornou muito a alguns clássicos da nossa infância e descobertas que a gente fez na nossa pesquisa pro filme. Obras (para crianças e adultos) como Alice no País das Maravilhas, Labirinto, a Magia do Tempo, Valerie e a Semana das Maravilhas, A Cara que Mereces e as encantadoras animações de Hayao Miyazaki sem dúvida influenciaram diretamente a criação do Despedida.

Quais são seus próximos projetos?

Vinícius – A situação atual do audiovisual e da cultura no país está bastante crítica, e isso dificulta muito a criação de novos projetos. Além dos ataques diretos a esse setor como um todo, o congelamento dos recursos do FSA dificulta bastante o desenvolvimento de novos trabalhos. Mas temos algumas ideias para próximos filmes, ainda em fase inicial, e continuamos estudando e trabalhando para encontrar formas de financiar os próximos projetos.

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Despedida: * * *

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