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Medeia ergue a voz contra os poderosos

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Medeia ergue a voz contra os poderosos Foto: Petra Belas Artes à la Carte/Divulgação

Para comemorar seus 10 anos em 2020, a Cia BR116 programava uma montagem da peça Medeia, assinada por Consuelo de Castro, uma das maiores dramaturgas brasileiras, morta em 2016. A pandemia, no entanto, impossibilitou que o espetáculo fosse apresentado em um teatro – o grupo paulistano, porém, encontrou no cinema a possibilidade de levar a obra ao público. Combinando linguagens, Medeia por Consuelo de Castro – um teatrofilme, como a companhia chama o projeto – é uma experiência audiovisual singular, que chega à plataforma Petra Belas Artes à la Carte a partir desta sexta-feira (9/4).

“As perguntas foram maiores que as respostas. Algumas dificuldades sanadas com insanidades e amizades. Soluções cênicas surpreendentes. Problemas econômicos gritando na vida dos envolvidos. A força da necessidade encontrando eco no poder da arte e da história. Nunca vimos tanta generosidade coletiva. E o seu contrário também”, explica Bete Coelho, que, além de protagonizar o espetáculo, dirige-o ao lado de Gabriel Fernandes.

Com uma equipe reduzida, os artistas da companhia dobraram suas funções, o que permitiu a encenação e a filmagem. Fernandes conta que aliar o cinema ao teatro potencializou o espetáculo: “Foi uma equação perfeita, gosto de filmar ator e amo a dramaturgia pungente e sofisticada da Consuelo. O ator, mais que o diretor, é quem está mais próximo do autor, expõe suas falas, dá vida, corpo, razão e emoção às personagens. Minha função foi, através da câmera e da edição, criar o terreno para florescer o trabalho dos atores e a história da Consuelo”.

Foto: Petra Belas Artes à la Carte/Divulgação

A peça, escrita em 1997, e intitulada Memórias do Mar Aberto – Medeia conta a sua história, é baseada no original do grego Eurípedes do século 5 a.C., recriando a trama e trazendo novas dimensões e conflitos internos para as personagens. Na tragédia clássica, Jasão (Flávio Rochaa) troca sua mulher, Medeia (Coelho), por Glauce (Luiza Curvo), filha do rei Creonte (Roberto Audio). Dessa maneira, o argonauta consegue um posto de destaque no exército. Ferida com a traição, a esposa trama uma terrível vingança. A versão de Consuelo, no entanto, traz algumas mudanças nessa trama, dando-lhe um contorno político e feminista contemporâneo.

O novo formato impôs alguns desafios e trouxe descobertas para a equipe e o elenco. “Pela primeira vez eu ensaiei um texto pela internet. O set era uma mistura de cinema e teatro. Um lugar novo para nós. Foi trabalhar ali, no limiar. Mas sentindo alguma coisa especial acontecer”, comenta Rochaa. Luiza concorda com o colega, e destaca o trabalho da dupla na direção: “Bete e Gabriel são a alquimia perfeita entre técnica e criatividade. Fazer a Glauce, nessa obra, foi também me reinventar em possibilidades imagéticas, físicas e sonoras”.

“Podemos ver na tela o cansaço, as olheiras que fizemos questão de não esconder. O desmedido. O acaso e o descaso. O suor lembrando que é teatro. Vemos uma trupe de atores se apropriar de uma tragédia que ainda é nossa: o poder infame e corrupto. Vemos uma mulher – com sua capacidade política, transgressora e intuitiva – sendo esmagada. Vemos, afinal, o início e fim de toda tragédia. Ações humanas sob o signo do sofrimento”, finaliza Bete.

Foto: Petra Belas Artes à la Carte/Divulgação

Como a versão da peça de Eurípedes recriada no musical Gota d’Água, de Chico Buarque e Paulo Pontes, e no romance da escritora alemã Christa Wolf, levada ao palco no Brasil pela Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz na montagem Medeia Vozes, a Medeia por Consuelo de Castro propõe uma revisão do mito e da tragédia grega. A protagonista é apresentada menos como bruxa cruel – ainda que seus crimes não sejam esquecidos, mas amenizados – do que como uma vítima do Estado e de seus governantes inescrupulosos. Mais do que isso: Medéia é uma insurgente contra o papel que a sociedade e a cultura machista e patriarcal reserva às mulheres, de meras reprodutoras da descendência familiar e instrumentos para a ascensão masculina.

O texto não hesita em acrescentar expressões chulas para dar conta da virulência dos ataques à protagonista e ao que ela representa para o status quo de Corinto, reino que se considera civilizado e que despreza a “bárbara” Cólquida, terra natal de Medeia. Os diálogos entre Creonte e Jasão – interpretados com talento e vigor por Roberto Audio e Flávio Rochaa – são incomodamente atuais, parecendo conversas que se poderia entreouvir hoje mesmo nos corredores dos palácios de Brasília.

Foto: Petra Belas Artes à la Carte/Divulgação

No papel-título, Bete Coelho transmite a força e as contradições da personagem, sublinhando especialmente o dilaceramento de Medeia por paixões conflitantes, que a levam a amar e odiar na mesma medida o marido Jasão, o irmão Apsirto (Matheus Campos) – morto por ela própria durante a fuga dos argonautas da Cólquida com o velo de ouro – e a posição política e social que ocupa.

Merecem destaque ainda as ótimas direção de arte, cenografia e figurino de Cassio Brasil, a música dramática e expressionista de Felipe Antunes – que inclui um blues rasgado na voz da cantora Tulipa Ruiz durante os créditos finais do filme – e em especial a soberba fotografia assinada pelo diretor Gabriel Fernandes, cujo preto e branco de contrastes marcantes lembra outros memoráveis relatos cinematográficos de poder, glória e derrocada ambientados em tempos pretéritos como a versão do trágico regicida no Macbeth (1948) de Orson Welles ou a visão da Morte em O Sétimo Selo (1957), de Ingmar Bergman.

Foto: Petra Belas Artes à la Carte/Divulgação

Medeia por Consuelo de Castro* * * * *

COTAÇÕES

* * * * * ótimo     * * * * muito bom     * * * bom     * * regular     * ruim

Assista a três teasers de Medeia por Consuelo de Castro:

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