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“Todos os Mortos” expõe as chagas vivas do Brasil de ontem e hoje

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“Todos os Mortos” expõe as chagas vivas do Brasil de ontem e hoje Vitrine Filmes/Divulgação

Entra em cartaz nos cinemas brasileiros nesta quinta-feira (10/12) o filme Todos os Mortos (2020), dirigido por Caetano Gotardo e Marco Dutra. O longa estreou na Competição Oficial do Festival de Berlim e teve exibição especial na 44ª Mostra Internacional de Cinema, além de ganhar três Kikitos no 48º Festival de Cinema de Gramado: melhor atriz coadjuvante (a grande cantora Alaíde Costa), ator coadjuvante (Thomás Aquino) e trilha musical.

Todos os Mortos é um retrato histórico do racismo estrutural no país cuja trama, ambientada na virada do século 19 para o 20, reverbera na sociedade brasileira contemporânea. Ambientada em São Paulo entre 1899 e 1900, a história se passa 11 anos após o fim do período escravagista e está centrada nas mulheres de duas famílias – uma branca, os Soares, e outra negra, os Nascimento, interpretadas por Mawusi Tulani (ótima atriz dos espetáculos Bom Retiro 948 Metros Cartas de Despejo), Clarissa Kiste (do longa Trabalhar Cansa e no elenco da novela Amor de Mãe), Carolina Bianchi (das peças Lobo e Mata-me de Prazer) e Thaia Perez (dos filmes Aquarius e O Homem Cordial).

O jovem Agyei Augusto (do musical Escola do Rock) é um dos protagonistas do filme, que também tem participações especiais da cantora Alaíde Costa e do ator Thomás Aquino (Bacurau), além da atriz portuguesa Leonor Silveira – conhecida por seu trabalho com o célebre cineasta lusitano Manoel de Oliveira.

Vitrine Filmes/Divulgação

Salloma Salomão, músico, ator e dramaturgo, autor da trilha sonora premiada em Gramado e consultor de roteiro e montagem de Todos os Mortos, presume que os diretores Caetano Gotardo e Marco Dutra se fizeram a pergunta “quando foi definida a sociedade brasileira atual?” para dar origem ao roteiro do filme. “Sem mencionar a violência contemporânea, o filme investiga um tempo histórico que parece muito distante, contudo não é. Um curto período da história do Brasil em que uma nova elite política se instalou no poder central, dando um golpe de estado na família imperial de origem portuguesa e esboçando um novo projeto de sociedade. Um Brasil republicano e ‘moderno’ sobre os pilares de uma cultura colonial escravagista, portanto, violenta”, continua o doutor em História da África e Culturas Afro-Diaspóricas pela PUC São Paulo.

Ainda nas palavras de Salloma, “Todos os Mortos propõe ao espectador um recorte de tempo, os últimos 120 anos. Um recorte geográfico, a cidade de São Paulo em dois movimentos temporais que se atravessam mutuamente. De 1899 até o presente, num salto que suprime a cronologia convencional”. O texto completo do artista e historiador pode ser lido neste link.

Todos os Mortos participou ainda da seleção oficial de festivais como San Sebastián, Biarritz, Riga, Viennale e Huelva, além de ter levado o prêmio de Melhor Filme na Mostra Silvestre do IndieLisboa.

Vitrine Filmes/Divulgação

Os realizadores Caetano Gotardo e Marco Dutra se conheceram há 21 anos no curso de cinema da Universidade de São Paulo e sempre trabalharam em proximidade, colaborando em diferentes funções nos filmes um do outro. Ambos são integrantes do coletivo Filmes do Caixote – assim como Juliana Rojas, montadora de Todos os Mortos.

Caetano e Marco dirigiram juntos a montagem teatral Bodas de Sangue, experimento cênico a partir do texto de Federico García Lorca e do filme de Carlos Saura, e também a série Noturnos, atualmente em cartaz no Canal Brasil e na Globoplay. Todos os Mortos é o primeiro longa-metragem que ambos dirigem em parceria.

Um dos aspectos mais interessantes de Todos os Mortos é o uso do anacronismo para denunciar a atualidade das questões levantadas pela história que se desenrola 120 anos antes do nosso tempo. Sutilmente, Caetano e Marco vão contrabandeando para dentro do enredo de época – encenado em um tom excessivamente teatral e com diálogos literários em demasia, que soam em especial artificiais na boca dos personagens de origem social mais humilde – referências atuais e desconectadas do tempo da ação: barulho de tráfego e som de helicóptero, um edifício moderno no canto da imagem, placas de sinalização de trânsito.

Essas inserções vão gradativamente tornando-se mais evidentes na tela, chegando ao ponto em que os personagens vestidos com seus figurinos centenários circulam com naturalidade na paisagem urbana de hoje da capital paulista. Um recurso sensível que denuncia sem meios termos a perenidade de chagas históricas que, antes como agora, precisam ser tratadas com urgência para que avancemos como sociedade: o racismo entranhado na cultura, o patriarcalismo e a inferiorização social e econômica feminina, o preconceito contra religiões de matriz africana, a marginalização das classes mais pobres. Todos os Mortos lembra com pesar que somos um país ainda a ser construído.

Vitrine Filmes/Divulgação

Vitrine Filmes/Divulgação

Todos os Mortos: * * *

COTAÇÕES

* * * * * ótimo     * * * * muito bom     * * * bom     * * regular     * ruim

Assista ao trailer de Todos os Mortos:

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