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Orquestra Villa-Lobos: muito além do palco

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Orquestra Villa-Lobos: muito além do palco Foto: Orquestra Villa-Lobos/Divulgação

Nos últimos dias, a situação de paralisação das oficinas da Orquestra Villa-Lobos (OVL), um dos projetos de inclusão social mais antigos ligados à rede municipal de ensino de Porto Alegre, foi notícia em diversos veículos da imprensa. Sem a renovação do convênio com a Prefeitura de Porto Alegre, desde abril de 2020, os 20 educadores que atuam nas aulas de música estão sem salário, em uma situação de apreensão sobre a continuidade do programa que se estende há 19 meses. O projeto, que atende mais de 300 estudantes, faz parte não só da vida escolar da EMEF Heitor Villa-Lobos, mas da comunidade da Vila Mapa como um todo, e representa um caminho de futuro para muitos jovens.

A maneira como a Orquestra Villa-Lobos começou diz muito sobre a sua história e a relevância que o projeto tem dentro da comunidade, na Lomba do Pinheiro. A funcionária pública e regente que coordena o projeto, Cecília Rheingantz Silveira, lembra que tudo teve início a partir de uma demanda dos próprios alunos. “Comecei, em 1992, com 14 crianças, dando aulas de flauta doce no contraturno escolar. Fiz isso para atender ao pedido dos próprios alunos, que queriam estender as aulas de música que tinham no ensino regular”, conta. A partir daí, a coisa foi crescendo ano a ano. Hoje, a orquestra, que se encontra prestes a completar 30 anos de existência, coleciona mais de 1,3 mil concertos realizados, em 60 cidades do Brasil e do Mercosul. Mas, para compreender melhor a atuação da OVL, e a importância de manter esse projeto funcionando, é preciso olhar para além do palco.  

“A Orquestra Villa-Lobos é muito mais do que uma orquestra, ela é, na verdade, um programa de educação musical”, aponta Cecília. Isso significa que, para além do grupo artístico principal que se apresenta nos espetáculos, a orquestra é um importante e amplo projeto de transformação social a partir da música. Inserido na Vila Mapa, uma comunidade pobre e vulnerável, constituída em grande parte por ocupações ilegais ao longo do tempo – o que significa um grande número de casas sem iluminação e saneamento básico, com um alto índice de violência –, o programa tem um papel central, e muitas vezes decisivo, na trajetória de muitas crianças. O contato com a música, que desenvolve a sensibilidade e a habilidade, se torna também um aliado fundamental para manter o jovem longe dos problemas que a vida na periferia pode trazer. Ao ingressar na orquestra, o prazer da música carrega a possibilidade de sonhar com um destino mais próspero. 

O programa tem uma metodologia pedagógica que visa atender estudantes de diversas idades, dando preferência a alunos regulares da escola ou de outras escolas municipais da região. A porta de entrada na formação musical se dá, principalmente, pelas turmas da oficina de flauta doce. “A gente musicaliza crianças a partir dos sete ou oito anos por meio da flauta doce. Também temos o coral infantil, que atende crianças ainda menores, do primeiro ano da escola, não alfabetizadas, e a oficina de percussão, que as crianças adoram”, explica Cecília. Da entrada do aluno, por meio das oficinas, até a sua participação no corpo artístico da orquestra, tudo depende dele próprio. Conforme relata a regente, o aluno ingressa, e permanece, por interesse próprio. “Nós temos muitos alunos em que quase toda a família já passou pelo programa da orquestra. Se criou uma cultura muito bacana na comunidade, de apostar na Orquestra Villa-Lobos como um meio de transformação social”, avalia.

Espetáculo Afrika, 2019. Foto: Orquestra Villa-Lobos/Divulgação

Apesar de não ter como objetivo primordial formar músicos profissionais, a trajetória no projeto muitas vezes acaba por transformar o prazer de tocar em uma opção de carreira. Com o tempo, e percebendo a demanda, as oficinas foram sendo organizadas de forma a dar conta de capacitar e preparar os alunos para ingressarem no curso superior de música, que geralmente exige provas específicas do instrumento escolhido. O foco do trabalho desenvolvido é promover um tripé formado por educação, cultura da arte e inclusão social. “Um dos fatores que ainda acaba por afastar os alunos do percurso são as necessidades do cotidiano, como assumir um emprego em turno integral e não ter mais tempo para os ensaios”, comenta Cecília. 

Recentemente, apesar da falta de recursos locais, a orquestra foi premiada pelo Relief Fund for Organizations in Culture and Education, desenvolvido pelo Ministério das Relações Exteriores alemão e o Goethe-Institut, um fundo voltado a reduzir os impactos da pandemia de covid-19 em projetos culturais e de educação do mundo inteiro. O programa recebeu uma verba de 22,7 mil euros (o equivalente a cerca de R$ 140 mil), que será utilizada em três iniciativas – uma delas é uma bolsa em dinheiro aos alunos membros do grupo artístico, algo inédito até então na história da formação. Infelizmente, o prêmio não pode ser utilizado para dar continuidade às oficinas.

A comunidade está mobilizada em ajudar o projeto e garantir a sua sobrevivência. Para se ter uma ideia mais concreta da importância da orquestra, basta olhar para os números. A EMEF Heitor Villa-Lobos, de acordo com informações da Secretaria Municipal de Educação (SMED), possui hoje aproximadamente 1,3 mil alunos matriculados. A orquestra, por sua vez, atende com seu programa de formação musical cerca de 300 jovens, o que significa quase um quarto da comunidade escolar.

Ensaio na EMEF Heitor Villa-Lobos. Foto: Orquestra Villa-Lobos/Divulgação

“Eu sei que ter escolhido o caminho da orquestra me ajudou a não me perder em coisas ruins. Eu sempre penso nisso e sinto que foi uma escolha certa”, compartilha Ana Clara dos Santos Rubio, de 15 anos, violoncelista e flautista do grupo artístico. Hoje, apesar de ter se mudado para Cachoeirinha, Ana Clara segue frequentando os ensaios semanais. Para a jovem, que pretende seguir tocando e não deixa de cogitar uma carreira como musicista, os ensaios significam comprometimento: “A coisa mais legal é a emoção que a música traz. Mas, o que eu mais gosto é ensaiar uma música nova. É um desafio, que vira um objetivo a ser alcançado”, afirma.  

A história de Ana Clara é um exemplo, entre muitos, da transformação que a Orquestra Villa-Lobos vem fazendo há anos na comunidade. Ela conta que entrou para o grupo aos nove anos, influenciada pela família. Sua irmã, Aline Maris, foi aluna e hoje é uma das professoras das oficinas. Assim como essa família, muitas outras estão engajadas nas atividades há várias gerações.

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