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Pandemia paralisa atividades culturais e afeta milhares de técnicos e produtores no RS

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Pandemia paralisa atividades culturais e afeta milhares de técnicos e produtores no RS

As lives de artistas da música, transmitidas pelas redes sociais, têm sido uma constante do período de isolamento. Quem subia aos palcos em dias pré-pandemia ainda encontra maneiras de se expressar e manter o contato com o público – ainda que, na grande maioria das vezes, sem qualquer retorno financeiro.

Se o cenário já é difícil para os artistas de modo geral, especialmente para aqueles em situação financeira menos privilegiada, a situação se torna muito mais grave quando escutamos os relatos de profissionais de atividades técnicas e produtores culturais das linguagens artísticas que envolvem a presença de público – da música ao audiovisual, das artes cênicas às visuais.

As incertezas da pandemia talvez possam ser resumidas em uma frase, repetida com pequenas variações por diversas pessoas que entrevistamos para esta reportagem: “Fomos os primeiros a parar e seremos os últimos a sair da crise”.

Conforme já noticiamos na Parêntese, em dezembro, segundo estudo das Secretarias de Planejamento (Seplag) e Cultura (Sedac) do Rio Grande do Sul, as atividades econômicas relacionadas à cultura têm papel de destaque na economia do Estado – que ocupa a quarta posição no ranking nacional da chamada “indústria da criatividade”, ficando atrás apenas de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.

Embora os números da pesquisa referentes a essa indústria também incluam atividades relacionadas a mídia e tecnologia, a participação do setor chama atenção. Em 2017, a indústria da criatividade empregou formalmente 130 mil pessoas no Estado, superando os 111 mil contratados pelo setor calçadista e 105 mil nas montadoras automobilísticas.

Os dados disponíveis não informam a quantidade de trabalhadores informais no setor, apenas a taxa média de informalidade em todos os segmentos da economia gaúcha, que era de 28% em 2017. Outro dado importante divulgado pela Sedac é o número de microempreendedores individuais (MEI) registrados em 2019, que incluem 9.786 profissionais de artes visuais e performáticas e 1.877 que atuam no setor audiovisual.

Choque, dificuldades e busca de um plano B

“Por enquanto, estou em choque”, conta Arih Lopes, que há seis anos é dono de uma produtora focada em espetáculos infantis de teatro, dança e música. Ele ressalta que a crise provocada pelo COVID-19 surge logo após os meses de janeiro e fevereiro, período em que a programação de artes cênicas da cidade costuma ser reduzida, tornando ainda mais grave o impacto sobre os profissionais que atuam nessas áreas.

“Será um momento de repensarmos todas as nossas relações, somos obrigados a sermos seres humanos melhores”, reflete o produtor. Arih acredita que, tão logo se restaure alguma normalidade, muitos profissionais terão que procurar emprego fora do meio cultural. Assim como outros tantos, ele tem acompanhado de perto iniciativas pontuais de auxílio e estímulo, em nível local e nacional, voltadas ao meio artístico e a trabalhadores autônomos e informais.

Iluminador há 22 anos, com atuação em teatros da cidade e atualmente trabalhando como freelancer, Leandro Gass concebe projetos de iluminação e realiza a operação de luz de espetáculos de teatro, dança e música. “Quando o vírus chegou aqui, não foi surpresa pra mim”, conta Leandro, que recordava os impactos da epidemia do H1N1 e, no início do ano, acompanhava o noticiário sobre a disseminação do COVID-19 na China. Leandro define a situação como “devastadora”. “Como vamos trabalhar home office? Como fazer uma luz, montar um palco de casa?”, questiona. “A perspectiva para mim é zero. Na minha visão, nem começou ainda.”

Para a iluminadora cênica Carol Zimmer, ainda que as recomendações de isolamento sejam aliviadas nos próximos meses, outros desafios surgirão. “Mesmo que voltem as atividades, não sei se o público vai buscar de imediato”, comenta. Ela acredita que somente na primavera ou no verão seja possível retomar de forma mais efetiva a programação cultural da cidade. Nas últimas semanas, Carol tem se dedicado exclusivamente a cuidar do filho de dois anos e meio. “Minha vida hoje é voltada a dar conta da energia dele”, conta.

Coordenadora de infraestrutura e operações de eventos ao ar livre, Francine Mello vinha desde dezembro viajando a trabalho pelo país. Nas últimas semanas, também teve trabalhos adiados, como o show da banda Metallica, em Porto Alegre – inicialmente marcado para abril e adiado para dezembro. “Deparei com uma realidade: uma vez que trabalho com multidões, preciso ter um plano B”, reflete. “Penso em como sobreviver a outras situações próximas disso que estamos vivendo.”

Francine conta que começa a cogitar a possibilidade de desenvolver cursos para compartilhar seus conhecimentos. Além disso, observa as movimentações atuais no meio da música, como os shows transmitidos via streaming. Apesar do cenário atual não apontar perspectivas claras, alimenta o otimismo de que, passados os períodos de isolamento e controle do vírus, as oportunidades de estar com outras pessoas em eventos culturais adquira um valor maior.

Incertezas e solidariedade

Técnico de som do bar Agulha e freelancer em shows de artistas nacionais e internacionais, Olímpio Machado lembra que, logo no início das medidas de isolamento, teve cerca de dez apresentações desmarcadas. Ele se preocupa com o cenário a médio e longo prazo e com a possibilidade de uma “nova onda” do COVID-19. “Por mais que ocorra uma retomada nos próximos meses, não tenho certeza de que aglomerações, como em shows, sejam liberadas”, conta.

Olímpio conseguiu dar sequência a alguns trabalhos que desenvolve em estúdio, na sua casa, mas não considera essa atuação um caminho viável enquanto as programações de shows não forem retomadas. Ele destaca iniciativas que têm surgido no meio cultural para apoiar profissionais em situação de maior vulnerabilidade, mas não é otimista a médio e longo prazo: “Não tem muito pra onde correr quando a cultura não pode estar na rua junto contigo”, resume.

Uma dessas iniciativas ganhou forma por meio do produtor musical Thiago Piccoli. Ele criou a vaquinha online Faça o Show Continuar, que arrecada recursos para a compra de cestas básicas destinadas a trabalhadores informais da indústria do entretenimento – roadies, técnicos de luz e som, motoristas, profissionais de limpeza, seguranças, bilheteiros, fotógrafos, entre outros.

“Quando lancei a ideia, conseguia ajudar dez pessoas, só que muita gente entrou em contato e, em menos de uma semana, já tinha conseguido aumentar a capacidade de entrega para 50 profissionais”, conta Thiago. O auxílio, que conta com o apoio de artistas e empresas, já garantiu cestas básicas até junho para as famílias desses profissionais – e a meta é conseguir ajudar 200 famílias.

Quem também se articula para ajudar os colegas é o roadie e diretor de palco Piquet Coelho. Ele aproveitou sua rede de contatos para criar o grupo de WhatsApp Ajuda os Roadies na Quarentena. Por lá, tem conversado com profissionais que atuam em shows de diferentes estilos, do rock ao sertanejo, trocando informações sobre as medidas do governo federal voltadas a trabalhadores autônomos e informais e organizando a entrega de cestas básicas. “As pessoas ligam chorando e pedindo ajuda”, conta.

Piquet também sentiu o impacto da pandemia: nas primeiras semanas de isolamento social teve 20 shows desmarcados. Atualmente conta com uma reserva financeira obtida nos meses anteriores e com a receita de instrumentos que está colocando à venda. “Estou negociando equipamentos para pagar algumas contas”, explica.

Mudanças de planos, frustrações e falta de perspectivas

“Não tenho outra fonte de renda, trabalho com isso há 15 anos”, conta a maquiadora de produções audiovisuais Deby Marques, que atualmente vive com os recursos obtidos nos últimos projetos em que atuou. Depois de trabalhar nos bastidores de um longa-metragem, de janeiro ao início março, em São Paulo, ela tirou o que era para ser uma semana de folga em Porto Alegre e veio visitar a família – antes de começar a pré-produção de uma série, que acabou sendo adiada. O desenrolar dos acontecimentos obrigou-a a permanecer na capital gaúcha. “Estou na casa da minha avó passando a quarentena com ela”, explica.

Assistente de câmera em produções audiovisuais, Brenda Behncke também está tendo que lidar com o adiamentos de projetos. Para além das questões financeiras e profissionais, Brenda preocupa-se com seu histórico de problemas respiratórios e segue à risca as recomendações de isolamento. “Temos que respeitar este momento para não ser pior. Pode cancelar um ou dois projetos agora, mas pode não ter mais nada daqui seis meses”, reflete.

No caso do setor audiovisual, ela acredita que projetos que estão sendo concluídos atualmente e as possibilidades das plataformas de streaming podem, em alguma medida, aliviar o impacto da crise – pelo menos, para uma parte dos profissionais. “A saída é ficar junto, cada um na sua casa, para ajudar quem pudermos e pedir ajuda se precisarmos. Só assim teremos perspectivas para o futuro”, defende.

Assim como Brenda, Alexandre Moreira também lida com problemas de saúde crônicos e precisa redobrar os cuidados diante da pandemia. Artista, montador e cenógrafo, ele viu projetos serem interrompidos em suas três áreas de atuação. Convidado para criar uma serigrafia nas instalações do Museu do Trabalho, para o Consórcio de Gravuras da instituição, teve sua participação suspensa, já que o espaço foi mais um a fechar as portas em março.

Coordenador de montagem das exposições da 12ª Bienal do Mercosul, cuja inauguração estava prevista para o dia 16 de abril, ele também teve que enfrentar o adiamento da mostra. Para completar, a temporada da peça Palácio do Fim, na qual Alexandre assinou a cenografia, foi interrompida após duas apresentações. “O espetáculo foi atropelado”, conta o artista, que não esconde a frustração de lidar com o cancelamento após ter se dedicado a fundo na concepção espacial da peça. “Há muito tempo não me envolvia num processo mais longo”, relembra.

Produtora executiva na área das artes visuais, Nonô Joris diz que espera a implementação de medidas mais diretas do governo estadual em apoio ao meio cultural – por meio, por exemplo, do Fundo de Apoio à Cultura. No entanto, vê com reservas as medidas relacionadas à Lei de Incentivo à Cultura, as quais demandam a captação de recursos junto a empresas e instituições em um momento de instabilidade econômica. (Veja abaixo as medidas tomadas pela Secretaria de Estado da Cultura.)

Nonô conta que os trabalhos que iniciou antes da crise do COVID-19 – como prospecções e orçamentos aguardando aprovação – também não resistiram à pandemia e estão paralisados. Nas últimas semanas, a produtora tem se dedicado a outras atividades, como a produção de pães, já que não enxerga condições de aproveitar o período de isolamento para desenvolver novos projetos: “Tenho muita dificuldade em vislumbrar minimamente o que vai acontecer. Nessa situação, como vamos projetar alguma coisa? Pressupõe um cenário futuro, e não temos nenhum”.

A mobilização de entidades do setor diante da pandemia

“A maior preocupação é com o sustento desses profissionais e de suas famílias. Uma das propostas que temos é a criação de um fundo de amparo ao trabalhador da arte”, afirma Fábio Cunha, presidente do Sated-RS (Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos e Diversões do Rio Grande do Sul). “Esses editais que os governos estão propondo atendem apenas uma pequena parcela, queremos buscar algo mais abrangente. Um auxílio-salário, algo do tipo, pois, além de termos de nos reinventar, teremos que sobreviver”, completa.

Fábio conta ainda que a entidade está em contato com profissionais do setor e com as secretarias de Cultura do Estado e dos municípios. Além de distribuir cestas básicas – e planejar postos de arrecadação e distribuição de alimentos -, o sindicato participou da reivindicação junto a parlamentares para que a classe artística fosse incluída na proposta de Renda Básica Emergencial.

Presidente do SIAV-RS (Sindicato da Indústria Audiovisual do Rio Grande do Sul), Rogério Rodrigues ressalta o cenário preocupante que já existia antes da COVID-19: “Mesmo representando quase 2% do PIB nacional, a indústria audiovisual já vinha sofrendo a paralisia causada pelo atual governo, por conta da sua agressiva política de segregação com o setor, afetando toda a cadeia produtiva, especialmente as produtoras de conteúdo autoral”.

Em busca de alternativas, o SIAV-RS tem dialogado com a Coordenação de Cinema e Audiovisual da Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre, a Secretaria de Estado da Cultura e entidades do setor como IECINE, APTC-RS e Fundacine. “Temos procurado formas de capitalizar as produtoras com licenciamento de obras já realizadas por parte de fundações ou entes do poder público”, explica Rogério.

Presidenta da APTC-RS (Associação Profissional de Técnicos Cinematográficos do Estado), Daniela Strack conta que a entidade tem atuado junto à Sedac e à Secretaria da Cultura de Porto Alegre “para pensar propostas de políticas públicas que contemplem toda a variedade de profissionais do audiovisual”. Junto a outras entidades, a APTC-RS também se mobilizou em relação à Renda Básica Emergencial.

A entidade buscou ainda apoio de advogados para esclarecer dúvidas dos profissionais do setor e encontrar caminhos jurídicos que possam protegê-los de situações de vulnerabilidade econômica e social. “O próximo passo é buscar formas de apoio junto a entidades privadas para desenvolvermos ações específicas para o setor, além de ampliarmos nossos contatos com as secretarias de Cultura dos municípios fora da Capital”, diz Daniela.

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