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“Fake Fiction”: contos de tempos sombrios

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“Fake Fiction”: contos de tempos sombrios Capa e contracapa de Fake Fiction. Foto: Dublinense/Divulgação

Rio de Janeiro, junho de 2013. As manifestações que começaram como uma série de protestos contra o aumento das passagens no transporte público tornam-se um indigesto caldo de Brasil. O coro multitudinário que tomou as ruas do país passa a reunir não apenas vozes com reivindicações diversas e legítimas, mas também gritos protofascistas que antecipam tempos de obscurantismo:

Já no meio do trajeto, um pouco atrás e à esquerda de onde está, ela vê dez ou onze enormes bandeiras vermelhas tremulando uma ao lado da outra, as bandeiras que ela reconhece de tantas outras lutas, de tantas outras causas, bandeiras que já a fizeram gritar, chorar de tristeza e de alegria, brigar, virar voto, estar na rua por um ideal e sem ganhar nenhum real, crer que as coisas poderiam mudar e mudariam, bandeiras que lhe fazem lembrar de tantos amigos com os quais já havia ocupado as ruas desde o final da adolescência, que lhe fazem lembrar dos pais, das caminhadas em dia de eleição, dos primeiros votos, e das quais agora quer ficar perto ao menos um pouquinho naquele dia especial, que é o que faz ao seguir quase correndo em direção a elas, e quando entra no meio delas vê que estão cercadas por várias pessoas de preto que agressivamente gritam sem partido, que agressivamente gritam sem bandeira, que gritam que é para abaixar as bandeiras, que gritam que aquilo tinha acabado e que aquilo não iria mais tomar as pautas do povo, que agora era o povo e não os políticos que estavam no comando, que a mamata tinha acabado, que a roubalheira tinha acabado, que a corrupção tinha acabado, e quando uma dessas pessoas de preto mostra uma faca e ameaça uma das pessoas que segura o mastro de uma dessas bandeiras, uma pequena correria começa e ela também corre, corre muito, corre sem entender o que estava acontecendo, que faca era aquela, quem eram aquelas pessoas e o que queriam ao ameaçar assim aquelas bandeiras que por tanto tempo foram seu norte na militância, a imagem mais precisa que ela tinha de um Brasil melhor.

O trecho acima, escrito pelo psicólogo e ensaísta Danichi Hausen Mizoguchi, integra o primeiro texto da antologia Fake Fiction: Contos sobre um Brasil Onde Tudo Pode Ser Verdade (Dublinense). Organizada pelos escritores Julia Dantas e Rodrigo Rosp [confira a entrevista a seguir], a obra reúne narrativas breves de 36 autores, percorrendo uma linha do tempo que começa nas jornadas de junho de 2013, passa pelo impeachment de Dilma Rousseff e pela ascensão do bolsonarismo e nos leva a imaginar possíveis – e distópicos – futuros.

Em Seguidores, conto de Rosp, um homem vestido de verde e amarelo discursa enquanto caminha por um parque. À medida que radicaliza as palavras de ódio, seus 17 seguidores tornam-se uma multidão – que o segue não só nas redes sociais, mas também na marcha que vai ganhando forma. Em Anunciação, Dantas apresenta um estado totalitário que persegue e tortura seus críticos, com transmissões ao vivo dos interrogatórios pela plataforma Painel Brasil – A Rede Social da Pátria Livre.

O mosaico da coletânea inclui olhares sobre temas como violência policial (Impermeável, de Marcela Dantés), ditadura militar (Soluços, Rafael Bassi), racismo (Ninguém Segura a Mão de Ninguém, Leandro Godinho), homofobia (Um Mergulho, Arpoador, Dani Langer), violência de gênero (As que Não Estavam nos Jornais, Leila de Souza Teixeira) e ainda duas narrativas em que, com boa dose de bom humor, militarismo e desejo homoafetivo se atravessam (Soldadinhos do Desejo, Guilherme Smee; Preciso Falar com o Gabi, Vitor Necchi).

Quem tiver expectativas modestas em relação ao livro – afinal, como esperar consistência de uma antologia com 36 autores? – pode se surpreender positivamente. Chama atenção a potência elevada que se mantém até as últimas páginas da publicação. “Embora esperássemos um alto nível, acho que não esperávamos que os mais de oitenta contos que recebemos fossem tão bons. Realmente sofremos muito para escolher. Suponho que esse fenômeno indique o quanto as escritoras e os escritores tinham muito a dizer preso na garganta”, conta Julia Dantas.

Confira a entrevista com os organizadores de Fake Fiction.

Como surgiu o projeto da publicação?

Julia Dantas: O livro surgiu de uma inquietação nossa diante do cenário político e social do Brasil depois das eleições de 2018. Quando o Rosp me apresentou a ideia, eu não tive dúvidas de que esse livro era necessário. Infelizmente, um livro não tem o poder de derrubar um governo, mas é importante firmar posição e marcar, historicamente, que houve um imenso número de pessoas que seguiram apostando na arte e na cultura mesmo em meio a tempos sombrios.

Em relação ao financiamento coletivo para viabilizar o livro, como foi esse processo?

Rodrigo Rosp: Uma novidade para todos nós, mas que deu muito certo. Bacana demais conseguir despertar o interesse de tantas pessoas em torno da ideia do livro. Todo dia surgiam apoios de diversos cantos do país. Se havia um projeto para a gente se aventurar num financiamento coletivo, era esse. E felizmente deu tudo muito certo, e conseguimos até viabilizar a produção do livro em capa dura e com duas cores no miolo. Em suma, superou nossas expectativas.

Como foi feita a seleção dos autores e qual foi a orientação em relação aos contos? 

Rodrigo Rosp: Nós convidamos basicamente todos os autores e autoras que conhecíamos, desde muitos inéditos até alguns nomes mais conhecidos. O tema foi bem livre desde que, claro, dialogasse com o Brasil de hoje (sendo hoje um ano atrás). Para nossa surpresa e alegria, recebemos mais textos que teríamos sonhado. Foram mais de 80. E o maior problema foi a qualidade: de um nível muito alto. A ideia era ter cerca de 20 textos, ou 22 no máximo. Acabamos incluindo 36. Para mim, foi até meio sofrido deixar tanto texto bom de fora, mas foi um ótimo sinal ver como a ideia do projeto despertou a vontade de escrever em tanta gente. Dá uma sensação boa, de que tem muita gente boa lutando pelas mesmas coisas, do nosso lado. Quanto aos critérios, é claro que isso é subjetivo, então foi o resultado do que eu e a Julia achamos mais interessante. Fizemos questão de ter a mesma quantidade de homens e mulheres, e também de ter diversidade em outros aspectos, dentro do que é possível, pois isso está no cerne daquilo que defendemos.

Os contos seguem certa cronologia de acontecimentos, partindo das manifestações de 2013 e ultrapassando o momento atual. Ao longo da leitura, também é possível perceber certos encadeamentos temáticos. Como foi concebida essa costura?

Julia Dantas: Nosso foco era construir essa linha do tempo. Há contos que determinam com muita clareza quando aconteceram, e esses foram os primeiros que organizamos em ordem cronológica. Outros contos são mais ambíguos, e foi nesses casos que nós partimos para outros critérios, tentando agrupar textos com atmosferas parecidas ou temáticas que dialogassem. 

Com um título sugestivo que remete às redes sociais, o conto Seguidores, do Rodrigo, descreve aspectos da adesão provocada por discursos de ódio. O conto da Julia, Anunciação, vai por um caminho mais distópico, de um estado totalitário-midiático, permeado por comentários publicados nas redes sociais. Gostaria que vocês comentassem esses dois contos.

Julia Dantas: Eu estava pensando muito em como o tecido social se deteriora aos poucos, e não por decreto de um dia para o outro. Fiquei imaginando para onde esse governo atual nos levaria, e me dei conta de que o meu maior espanto com ele é como a barbárie está diante dos nossos olhos sem nenhuma tentativa de disfarce. Por isso, no conto crio a sala da transparência e coloco o envolvimento dos cidadãos. Chegamos a tal ponto de legitimação da violência como ação política que não há mais necessidade do estado esconder seu caráter violento.

Rodrigo Rosp: No meu caso, o conto foi escrito em sua primeira versão em 2017. Minha ideia era trazer esse paradoxo dos tempos atuais: de que atos e declarações de teor ofensivo, preconceituoso e até criminoso possam gerar mais seguidores para a pessoa. Todos os dias ficamos perplexos diante da crescente popularidade de um pensamento abjeto, da estupidez em sua plenitude. Para nossa surpresa, quem dissemina isso ganha cada vez mais seguidores, abalando até mesmo a noção de democracia. Então imaginei como seria se esses seguidores fossem reais, se caminhassem de verdade seguindo a pessoa. Para completar, escolhi o recurso da aliteração para dar força ao texto, pois a repetição, o eco, aquela batida dizendo sempre a mesma coisa faz parte da maneira como as massas são conduzidas, ou como certas pessoas conduzem seus seguidores.

Página de Fake Fiction. Foto: Dublinense/Divulgação
Página de Fake Fiction. Foto: Dublinense/Divulgação

O termo “narrativa” tem estado cada vez mais presente nos debates políticos. Também é comum ouvirmos que, se o momento atual fosse contado numa obra de ficção, muitos episódios seriam considerados inverossímeis. Como pensar esses debates que envolvem conceitos tão presentes no mundo do livro e da literatura?

Rodrigo Rosp: É ótimo que esses termos circulem mais, claro, que haja mais gente discutindo esses conceitos. Mas o mais fundamental é ver uma quantidade de autores e autoras engajados na ideia de fazer ficção sem receio de competir com um mundo cada vez menos verossímil.

O projeto do livro antecede acontecimentos mais recentes e declarações mentirosas como as que alegam que florestas úmidas são imunes a incêndios, dos quais “o caboclo e o índio”, na verdade, são os responsáveis. Fake Fiction segue se renovando quase diariamente, não?

Julia Dantas: Talvez nunca uma organizadora de livro tenha dito isso, mas é muito triste que o Fake Fiction mostre diariamente sua pertinência ao momento atual. Quando abrimos a chamada de contos, eu não tinha noção de que no final de 2020 estaríamos até com mais dificuldade para diferenciar os fatos das mentiras. Hoje me parece que esse problema ainda vai se aprofundar muito antes de encontrarmos alguma saída. Tenho a impressão de que estamos ultrapassando o momento da confusão entre verdade e falsidade e entrando num momento que essa separação já nem importa mais. Quanto mais individualista o mundo ficar, mais cada pessoa vai se sentir autorizada a fazer das crenças suas verdades, até que cada um tenha sua coleção de “fatos” que não precisam ser compartilhados coletivamente.

Por fim, na divulgação do financiamento coletivo, em 2019, o texto da editora afirma: “Um livro nunca é somente um livro: é um objeto de transformação”. De lá pra cá, em meio à continuidade das ações predatórias do governo Bolsonaro, também vimos uma manifestação do ministro Paulo Guedes propondo a taxação dos livros, “um produto da elite”. Qual o papel de autores e dos profissionais do mercado editorial como um todo diante desse contexto?

Rodrigo Rosp: Eu venho dizendo nos últimos anos que é um tempo péssimo para a vida, mas bom para a literatura. É que a literatura e o livro têm um simbolismo, um valor muito forte na luta contra o pensamento retrógrado, os negacionistas e obscurantistas, aqueles que desprezam a cultura e a educação. Essa turma adora atacar o livro e não é à toa que muita gente foi votar com um livro na mão em 2018. O que precisamos fazer é isso: resistir, reagir. Eu já fui censurado numa feira do livro em 2018, logo depois das eleições, porque tinha alguma coisa nos meus textos que incomodou esse pessoal. Na época, calei… hoje, me arrependo de não ter denunciado, de ter sido indulgente com a intolerância. Felizmente, essa luta se reflete muito na literatura brasileira contemporânea, que está cada vez mais engajada, discutindo e refletindo os temas do momento. 

Capa de Fake Fiction. Foto: Dublinense/Divulgação
Capa de Fake Fiction. Foto: Dublinense/Divulgação

Fake Fiction pode ser adquirido em formato impresso e eletrônico no site da Dublinense.

Ao todo, 36 autores compõem a publicação: Adriana Lisboa, Alexandra Lopes da Cunha, Altair Martins, Arthur Telló, Carlos André Moreira, Carlos Eduardo Pereira, Clarice Müller, Claudia Nina, Danichi Hausen Mizoguchi, Dani Langer, Eliana Alves Cruz, Gabriela Richinitti, Guilherme Smee, Guto Leite, Henrique Schneider, Irka Barrios, Julia Dantas, Lima Trindade, Leandro Godinho, Leila de Souza Teixeira, Lu Thomé, Luisa Geisler, Marcela Dantés, Marcelo Spalding, María Elena Morán, Michelle C. Buss, Nelson Rego, Rafael Bassi, Renata Wolff, Rodrigo Alfonso Figueira, Rodrigo Rosp, Sara Albuquerque, Taiasmin Ohnmacht, Tiago Germano, Vitor Necchi e Yuri Al’Hanati.

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