João Gilberto Noll aos pedaços
Após décadas de leitura assídua das obras de João Gilberto Noll (1946-2017) e de breves contatos profissionais com o escritor, o jornalista Flávio Ilha teve a oportunidade de se aproximar do premiado autor porto-alegrense em 2016, numa oficina literária. Os encontros ministrados por Noll na Livraria Baleia, em Porto Alegre, resultaram no primeiro livro de contos de Ilha (Longe Daqui, Aqui Mesmo) e propiciaram o ambiente ideal para uma amizade repleta de trocas – entre elas, a ideia de um documentário.
Caminhante inveterado, Noll chegou a sugerir locais da cidade onde gostaria que seus passos fossem registrados e trechos de suas obras que seriam lidos no filme. O embrionário projeto, no entanto, foi interrompido com a morte de Noll, aos 70 anos, na noite de 28 de março de 2017.
“Os contatos começaram à tarde, primeiro pelos aplicativos de mensagem. Discretos, já que ninguém sabia muito bem o que pensar. Não atende o celular, Fernando. Sabe de alguma coisa? Ele faltou à aula. Alguém descobriu o que houve, Nanni? Sempre chega cedo, hoje não apareceu. O telefone fixo também chamava, chamava, chamava. Mas ele não atendia. Depois trocaram ligações entre eles, os diálogos ficaram mais nervosos, não, não é comum, ele nunca falta, mas ninguém vai pensar que. Não é?”, narra Ilha no prólogo de João aos Pedaços (Diadorim Editora), biografia de Noll – em pré-venda no site da Livraria Baleia – que será lançada neste domingo (16/5), às 16h, em live da 13ª FestiPoa de Porto Alegre transmitida pelo YouTube.
Após a partida abrupta daquele que seria o protagonista do filme, a pesquisa para o livro tomou o lugar da proposta original de um documentário. “Não me interessaram detalhes que pudessem comprometer a privacidade do Noll, que ele prezava tanto, mas fui atrás de informações que pudessem relacionar o escritor e sua literatura. Fatos pessoais que influenciaram sua escrita estão descritos, cartas, mensagens eletrônicas, confissões, reflexões, tudo que interessa à literatura foi objeto de minha apuração”, conta Ilha – leia a entrevista a seguir.
Sem seguir uma ordem cronológica nem pretender uma abordagem exaustiva, Ilha abre o livro com uma narrativa de tom ficcional sobre as últimas horas de vida de Noll no apartamento onde vivia, na rua Fernando Machado, e então salta para o ano de 1980, no Rio de Janeiro, reproduzindo uma carta do escritor.
O livro em questão era O Cego e a Dançarina (1980), volume de contos agraciado com um dos seis prêmios Jabuti que Noll receberia ao longo de uma trajetória de reconhecimento, sobretudo, no meio literário. “João Gilberto Noll é um dos artistas contemporâneos brasileiros mais importantes e provocadores. Estou me referindo a artistas, não apenas escritores. Sua literatura é visceral, intuitiva e radical. Mas, embora tenha tal importância no cenário artístico do país, morreu sendo cultuado por um pequeno círculo de admiradores e sem comover as massas de leitores que deveria alcançar, se este Brasil fosse devotado à cultura”, analisa Ilha em nota da biografia. “João, é bom lembrar, viveu a maior parte dos seus 70 anos em profunda precariedade material, derivada de sua opção radical pela literatura”, completa Ilha.
Noll também refletia a respeito de suas escolhas, como se lê na entrevista concedida pelo escritor ao jornal Folha da Tarde na edição de 8 e 9 de novembro de 1980: “minha ficção bebeu fundamentalmente da vida que foi e continua sendo bastante difícil para qualquer brasileiro, com exceção obviamente para os donos do poder. Eu fui pro Rio com 22 anos, levei todas as porradas possíveis e imagináveis que um cara meio romântico de classe média pode e deve levar quando encara um projeto de criação. Enfim, nenhuma novidade maior: desemprego, solidão, morar mal. Se toco nisso, não é pra apontar aí nenhum heroísmo, mas para afirmar que é daí que nasceu o extrato fundamental para o meu trabalho literário”.
No bate-papo a seguir, Flávio Ilha fala sobre os desafios de biografar um personagem discreto, as relações entre a vida e a obra de Noll e o envolvimento do escritor na resistência à ditadura militar.
Flávio, nos conta um pouco sobre a tua relação com a obra de Noll e sobre como vocês se conheceram.
Eu leio Noll desde o primeiro livro dele, O Cego e a Dançarina, de 1980. Sempre, em maior ou menor escala, acompanhei seu trabalho literário. Como editor da revista Aplauso, entre 2005 e 2010, também tive breves contatos profissionais com ele, por e-mail ou telefone. Mas só fui conhecê-lo pessoalmente em 2016, quando cursei uma de suas oficinas na Livraria Baleia, em 2016, e que resultou no meu primeiro livro de contos, Longe Daqui, Aqui Mesmo (2018). Foi quando ele, finalmente, autografou meu exemplar de O Cego e a Dançarina, original que nem ele tinha mais! Sempre fui um admirador confesso de seu estilo e de seus livros.
Como o projeto de um documentário se transformou em biografia?
Na verdade, o projeto de documentário não chegou a tomar uma forma definitiva. O Noll morreu menos de um ano depois, embora já tivesse selecionado alguns trechos para leitura e locais onde gostaria de caminhar para que fosse registrado em vídeo. Não houve um roteiro, apenas um planejamento inicial e contatos muito preliminares com uma produtora interessada. No livro, não se manteve nada desse projeto – que foi inteiramente abandonado com a morte do escritor.
Como você conduziu a proposta de biografar alguém que zelava tanto pela privacidade?
Essa é uma questão relevante. O Noll era muito discreto e poucas, pouquíssimas pessoas conheciam detalhes de sua vida pessoal. Para teres uma ideia, as irmãs souberam apenas no dia do velório que ele tinha uma namorada há quase quatro anos! Então, precisei: 1. entrevistar muita gente para desvendar os fatos importantes de sua vida privada; e 2. ter cuidado para separar o que era fato da vida do escritor JG Noll e do cidadão JG Noll. Não me interessaram detalhes que pudessem comprometer a privacidade do Noll, que ele prezava tanto, mas fui atrás de informações que pudessem relacionar o escritor e sua literatura. Fatos pessoais que influenciaram sua escrita estão descritos, cartas, mensagens eletrônicas, confissões, reflexões, tudo que interessa à literatura foi objeto de minha apuração. Evitei, portanto, revelações sensacionalistas, em especial relacionadas a questões de orientação sexual.
Em que medida a obra de Noll aparece na biografia, em especial, as abordagens dele em relação a questões de sexualidade, um dos elementos literários mais analisados pela crítica?
Os livros do Noll estão repletos de vivências, algumas bastante pessoais. Então, há muitas relações entre os romances de Noll e fatos de sua vida narrados na biografia. O personagem icônico apresentado por ele em seus livros era sempre o mesmo, com pequenas variações de acordo com a conjuntura de produção. Em alguns romances, como Berkeley em Bellagio (2002) e Lorde (2004), a biografia desse protagonista coincide de maneira evidente com a própria vida do escritor, muitas vezes de forma explícita. Isso, evidentemente, está na biografia. Também algumas relações familiares têm relação com seus livros, o que também é mencionado na biografia. Questões sexuais também. Noll não tinha preocupação com rótulos, nunca se posicionou como hetero ou homossexual – embora tivesse um comportamento bastante livre e, se fosse conveniente classificá-lo em termos de orientação, pudesse ser considerado bissexual. O Noll colocava muito sexo em seus livros e falava de sexo em suas cartas e mensagens aos amigos e ao irmão Luiz Fernando, um de seus principais confidentes. Era uma preocupação central de sua vida e de sua literatura. Mas nunca usou esse tema como bandeira política ou coisa parecida, nem publicamente, apenas como manifestação humana presente no cotidiano.
O envolvimento de Noll na resistência à ditadura é um dos aspectos que chamam atenção na biografia. Como se deu essa participação?
Embora não tenha sido militante, Noll era um democrata e ajudou de forma indireta grupos que combateram a ditadura. Quando morou em São Paulo, durante alguns meses entre 1970 e 1971, Noll abrigou militantes perseguidos pelo regime e ajudou a dar fuga a outros militantes – alguns inclusive foram abrigados por sua família em Porto Alegre. Por conta disso, teve de fugir de São Paulo e viveu de forma discreta (quase clandestina) quando voltou ao Rio em 1971. Só voltou à normalidade a partir de 1972, quando finalmente alugou um apartamento no seu nome e retomou sua carreira de escritor.
Qual foi o principal desafio da pesquisa para o livro?
Acho que o maior desafio foi mesmo investigar a vida de uma pessoa tão complexa quanto o Noll, além de discreto. Foram muitas entrevistas, muitos documentos, muita leitura de livros. Costurar tudo isso num texto nem muito longo, nem muito curto, foi muito trabalhoso.
Por fim, como você compara o Noll que você conheceu pessoalmente e o Noll que a biografia apresenta?
São a mesma pessoa. Noll era tímido, discreto, solitário, tanto na vida quanto no livro. Ele não tinha uma persona pública, não representava um papel publicamente e outro na vida privada. Era um sujeito autêntico, que manteve a coerência de suas escolhas, especialmente pela literatura, até o fim da vida. Até na sua morte houve coerência: ele morreu sozinho em sua casa, como viveu a maior parte do tempo.
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Sobre o autor
Flávio Ilha é jornalista, escritor e editor, autor de Longe Daqui, Aqui Mesmo (2018) e Ralé (2019), finalista do prêmio Açorianos em 2020.
Lançamento
João aos Pedaços, de Flávio Ilha, será lançado em live, domingo (16/5), às 16h, transmitida pelo canal de YouTube da 13ª FestiPoa Literária, com a presença do autor da biografia e do escritor José Castello.
Pré-venda
O livro está em pré-venda (45 reais) no site da Livraria Baleia. Exemplares adquiridos até 20 de maio serão autografados pelo autor, com envios a partir de maio para todo o país.
FestiPoa Literária 2021
Em sua primeira edição totalmente virtual, por conta da pandemia, a FestiPoa Literária será realizada de 13 a 17 de maio, reunindo mais de 30 escritoras e escritores nacionais. Transmitida ao vivo pelo canal do YouTube e redes sociais do evento, com acesso gratuito, terá em sua programação, além dos homenageados Ana Maria Gonçalves e Sérgio Vaz, convidados como Jeferson Tenório, Marcelino Freire, Criolo, Letrux, Ricardo Aleixo, Luedji Luna, Teresa Cristina, Angélica Freitas, Paulo Lins, entre outros, em mesas redondas, oficinas, bate-papos e saraus.
domingo, 16 a 16 de maio de 2021 | 16h00