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Os barquinhos de papel e sanatórios de ternura de Davi Koteck

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Os barquinhos de papel e sanatórios de ternura de Davi Koteck Davi Koteck. Foto: Juliana Medeiros

Aos 25 anos, autor da coletânea de contos O que Acontece no Escuro (Editora Taverna), o escritor porto-alegrense Davi Koteck apresenta poemas em seu novo livro, Todo Abismo É Navegável a Barquinhos de Papel, lançando pela editora carioca 7Letras [leia a entrevista a seguir]. Dividida em três partes – Refluxo Lírico, Sanatórios de Ternura e Cascas de Parede –, a obra apresenta um olhar atento a microssituações cotidianas, como nos versos do poema-título:

todo abismo é navegável a barquinhos de papel

1.
acordar de olhos fechados
e fingir que ainda dorme

2.
num dia quente esticar a cortina
sentir o que resta de vento

3.
tomar decisões com o estômago vazio
pensar se esqueceu acesa a boca do fogão

4.
acender a boca do fogão embaixo da água
esquecer de gritar na hora marcada

5.
estar deitado num lençol
que se parece com o mar
e não mergulhar por medo de água
de morrer afogado
com o nariz bêbado
de olhos fechados
e tudo
engolir as ondas
o gosto de sal que sufoca

mas antes levantar
trocar a cama de roupa
prender o elástico embaixo
dos quatro cantos do colchão

O nome do livro emergiu aos olhos de Koteck ao ler Desenredo, de Guimarães Rosa. “Estava em uma aula de oralidade, fazendo a leitura desse conto. Quando li ‘todo abismo é navegável a barquinhos de papel’, decidi que seria o título do livro que eu ainda não havia escrito”, conta o escritor.

o mar

do barco de papel
sou mais um que não olha pra frente,
enquanto a superfície vibra
no intervalo módico das ondas.
O ponto cego do mundo
(a água é a parte mentirosa dos mapas)
e nós destinados
a naufragar pelas bordas.

“Davi escreve, com notável singularidade, sobre os intervalos, imperceptíveis em variados graus, dispersos entre o transitar do tempo e dos afetos, também sobre olhares e buscas que não se completam”, comenta o escritor Paulo Scott, apontando o caráter fragmentário – já presente em O que Acontece no Escuro – da poética de Koteck.

Ao longo da leitura de Todo Abismo…, os intervalos mencionados por Scott revelam-se também em lacunas – e no desejo de preenchê-las:

volátil

quero de novo dançar podres poderes
iluminar o quarto com as cores da rua
deixar no piso molhado o esqueleto
de cada tênis sandália
marcas daquela festa pequena e íntima
quero mudar o tom
como muda caetano
perder o equilíbrio
como quem perde o molho de chaves
tropeçar sem pedir desculpas
deixar teus braços abertos
                           [não é assim que se preenchem buracos?

Brechas de transcendência, limites permeáveis e Caetano Veloso – desta vez, em sincronia com o personagem Jep Gambardella, de A Grande Beleza, longa de Paolo Sorrentino –, estão a bordo de outro barquinho de Koteck, no poema que toma emprestado o título do filme italiano:

a grande beleza

é quando lá fora o sol
tímido e condescendente
uma lasca mentirosa
mas avermelhada de um tom soviete
lasca embora pareça
não é tão falsa quanto o meu
eu lírico cozinhando versos
a resposta está numa sala –
no entanto que seja de estar – invadida
por um feixe entardecido
e meu eu lírico não escreve agora porque
caetano canta nirvana com a voz inalada
enquanto numa tela plana e de alta definição
jep gambardella sob o reflexo ofusco diz que
no final é só um truque

sim, é só um truque.

Leia a entrevista com Davi Koteck.

Davi, antes de falarmos sobre Todo Abismo…, gostaria que você contasse um pouco da sua trajetória na literatura, que passa pela oficina do escritor Luiz Antonio de Assis Brasil.

Comecei a escrever com uns 19 anos. Só fui criar coragem para mostrar meus contos para alguém quando tinha 22, por aí. Nessa época eu já conhecia a oficina do Luiz Antonio de Assis Brasil. Meus escritores locais favoritos haviam feito e recomendavam em entrevistas. Me inscrevi sem pensar que seria aceito. Acho que só quando a oficina começou que comecei a produzir de verdade, antes escrevia três ou dois contos por ano e me dava por satisfeito. Durante a oficina, escrevemos exercícios quinzenalmente com a leitura do Assis. Foi dali que surgiu meu primeiro livro. É por causa da oficina que hoje escrevo com (um pouco mais de) naturalidade e confiança.

No ano passado você publicou O que Acontece no Escuro, pela Editora Taverna. Como foi o processo em torno do seu primeiro livro?

O que Acontece no Escuro é um livro produzido quase em sua totalidade na oficina do Assis Brasil. Dos 17 contos, oito foram escritos em exercícios de criação. Outros sete depois, e apenas um conto reescrito. Fui colega e virei amigo de escritores como Rodrigo Tavares e Vitor Necchi – ambos autores publicados pela Taverna. Eles acompanharam o processo e me incentivaram a enviar o original. Os guris [André Günther e Ederson Lopes, editores da Taverna] leram e toparam, e o livro nasceu. Acho que uma das melhores características do O que Acontece… é essa unidade temática e de narrador que se repete no universo dos contos. Foi algo proposital, mas, quase do acaso. Surgiu no meio do caminho.

Mais recentemente, já durante a pandemia, você lançou a revista online Rusga, coeditada com Pedro Dziedzinski, que já está na sexta edição. Como tem sido esse trabalho e de que forma a publicação contribuiu para atravessar 2020?

A Rusga surgiu justamente como uma muleta para atravessarmos – não só eu e o Pedro e a Yas (designer gráfica), mas todos os autores já publicados ali – esse ano paralisador que vivemos e ainda estamos vivendo. O trabalho por vezes é exaustivo por atuarmos de forma independente nas publicações (coisa que não abrimos mão). Mas gostamos de receber inéditos, publicamos amigos geniais; escritores incríveis que não imaginávamos publicar; gente que conhecíamos e nunca havíamos lido; gente de fora do país. E o retorno que temos a cada publicação é combustível para seguir produzindo no meio do caos.

Falando agora de Todo Abismo… e sobre a publicação pela 7Letras. De quando são os poemas que como surgiu a possibilidade de lançar o livro pela editora carioca?

O poema mais antigo do Todo Abismo… é do ano passado. Costumo dividir minha produção poética em blocos. Abro uma página no Word e vou empilhando poema-a-poema no arquivo. Acredito que isso ajuda na hora de ter uma unidade temática. Naturalmente eles conversam, porque foram escritos em momentos aproximados. Eu sempre gostei da editora 7Letras pelos títulos que publicavam. Até mesmo pelo projeto gráfico e editorial. Ali por maio, numa tarde corajosa, enviei o original, sem referência nenhuma. Umas três semanas depois eles responderam dizendo que queriam publicar. Desde então o processo do livro foi muito rápido.

Gostaria que você comentasse o título do livro, essa sugestão de percorrer uma situação extrema utilizando um recurso frágil e lúdico.

Essa questão do título é curiosa, porque intertextual. É uma frase de um conto do Guimarães Rosa. No início do ano passado, estava em uma aula de oralidade, fazendo a leitura desse conto. Quando li “todo abismo é navegável a barquinhos de papel”, solto, depois um parágrafo no meio do texto, decidi que seria o título do livro que eu ainda não havia escrito. Por consequência (ou inconsciente) os poemas saíram com essa pegada, que transita entre o peso e a leveza, a vertigem e o lúdico. A María Elena Moran, quando leu o original, disse “os teus poemas são como pequenas lâminas escondidas pelos cantos da casa”. Gosto de pensar no livro como essas armadilhas.

O livro está dividido em três partes: Refluxo Lírico, Sanatórios de Ternura e Cascas de Parede. Conta um pouco sobre essa estruturação.

Outro processo natural dentro da estrutura foi essa divisão. No primeiro caderno, os poemas conversam mais com a linguagem, há mais cuidado com a palavra, coisa que não se repete nos outros. Sanatórios de Ternura são poemas sobre afeto, sobre o temor do afeto, talvez sobre a vertigem que é enxergar uma nova possibilidade de si em outra pessoa, e que há (mas não só) beleza nesse trajeto. E a última parte, o Cascas de Parede são poemas de memória, alguns de infância, de idealizações e suas rupturas durante a vida. Talvez o caderno que mais simbolize a questão do barco de papel navegando em um abismo.

O poema que intitula o livro e Instruções reúnem versos que começam por verbos no infinitivo, como “acordar de olhos fechados/ e fingir que ainda” dorme” e “gritar até/ engolir as cordas vocais”. Gostaria que você comentasse essa semelhança entre os dois poemas.

Por curiosidade ou justamente atenção na tua leitura, são os dois poemas mais antigos do livro. Ambos passaram por um processo de decomposição dos versos até alcançarem essa estrutura. Até onde eu consigo saber, não foi algo proposital a repetição do infinitivo. Talvez estivesse apenas mimetizando minhas leituras atuais. Talvez esses poemas conversem mais do que eu saiba. Não dá pra saber o que acontece no escuro, né? Hahaha.

Gostaria que você falasse sobre a escrita a partir de fragmentos, que você já mencionou em ocasiões anteriores ao comentar os contos de O que Acontece no Escuro. Quando você escreve poesia, o que muda, se é que muda, em relação à escrita de contos?

Mesmo que exista uma semelhança nos espaços, nos fragmentos presentes nos contos e poemas, para mim, a construção de cada gênero ocorre de maneira muito distinta. O conto muitas vezes surge estruturado: personagem, conflito, história. O poema, por sua instantaneidade, é mais urgente, portanto, anárquico. Ocorre que estes espaços funcionam como uma segunda camada do texto. Trazem detalhes escondidos no não dito. E isso funciona em qualquer gênero.

Ainda em torno de fragmentos, em Todo Abismo… o leitor encontra diversas menções a fotografias. Você percebe que há um componente imagético na sua escrita?

Acredito que sim. Mas quando penso em imagem na poesia, me remete à torção poética que cada cena pode trazer. E como torção, digo a busca pelo que não está no primeiro plano, óbvio. E sim ao detalhe. As próprias imagens de referência fotográfica não remetem à imagem: são de fotos recortadas, fotos que carregam outros significados etc.

Perdas, lacunas e lembranças também são elementos recorrentes ao longo dos poemas. Como você vê a abordagem dessas temáticas na sua produção poética?

Naturalmente escrevo sobre o que me contorna. Sobre o que tenho medo, o que me angustia, o que impressiona e também o que cativa. Escrevo sobre coisas que até mesmo não sabia antes de escrever. Acredito muito na força da escrita para revelar o inconsciente. É algo novo em mim. Lembro de um poema do Manoel de Barros em que ele dizia ser necessário desorganizar palavras para revelar o que está acontecendo. Acho que é por aí. Isso tudo, de alguma maneira, faz parte da minha cartografia. De como me percebo poeta.

Capa de “Todo Abismo É Navegável a Barquinhos de Papel”. Foto: Divulgação 7Letras
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