Mulheres e penumbras de Tônio Caetano
O livro Terra nos Cabelos, de Tônio Caetano, obteve um reconhecimento raro para um começo de trajetória no mundo das letras. Publicada no ano passado pela editora Record, a obra foi a vencedora da categoria Conto no prestigiado Prêmio Sesc de Literatura de 2020, apresentando 15 narrativas curtas centradas em personagens mulheres.
“A menina que vê a mãe partir e se aferra a uma prolongada espera, a esposa infeliz que se aventura na casa de swing, as adolescentes enredadas nas primeiras experiências sexuais, em ritos de passagem e de iniciação. São, todas elas, personagens em contenda com o mundo, seja no âmbito familiar ou no universo da sociedade de forma mais ampla”, elenca o escritor Marcelo Moutinho na orelha do livro.
Tônio explica que o interesse em abordar subjetividades femininas implicou desafios. “Durante a escrita, eu pensava muito que as protagonistas deveriam ter motivações únicas e serem distantes física e mentalmente umas das outras. Sempre que começava um novo conto, eu me perguntava: qual a diferença desta personagem em relação às que já havia escrito?”, conta o escritor – leia a entrevista a seguir.
“Outro ponto sobre o qual refletia é que a vida se dá no movimento, no percurso interno e externo, que todo ser, mesmo inconscientemente, acaba fazendo. E que não cabia a mim resolver a vida das personagens. Então tentei não sobrepor a minha visão de mundo à delas e acompanhei a mudança possível de cada uma durante o tempo da narrativa”, completa o autor, porto-alegrense nascido em 1982, servidor público municipal e especialista em Literatura Brasileira pela PUCRS.
A leitura de Terra nos Cabelos também revela um olhar dedicado a momentos de certa penumbra, seja pela ambientação noturna ou pela natureza de encontros e experiências das personagens, como lemos no conto Memória da Delicadeza:
As ruas à noite são como corredores de grandes supermercados, é preciso saber onde expor o produto para fazer um bom negócio. É preciso também ter muita disposição para ficar viva, a concorrência é desleal. Quem está começando ou quem não se garante na mão acaba nos pontos mais iluminados, lugares preferidos dos bêbados e dos adolescentes sem dinheiro e com vontade de esculachar, Sheila sabe que os melhores clientes preferem privacidade, ruas mais escuras. O problema é que os mais violentos também. É uma névoa que alcança a todas, e ela já não tem nada a temer.
“Longe da luz do dia, da moral coletiva, estamos mais propensos a arriscar, a experimentar, a dar vazão aos nossos desejos”, observa o escritor. “A vida é muito assim, crepuscular, mas a gente, pelas demandas cotidianas, repetitivas, acaba não percebendo”, completa.
Leia a entrevista com Tônio Caetano.
Você recebeu um dos principais prêmios nacionais de literatura com a publicação do seu primeiro livro. Como tem sido obter esse reconhecimento?
Tem sido um aprendizado diário. Ganhar o Prêmio Sesc de Literatura mexe com tantos sentimentos. Tem muita alegria, tem a responsabilidade com os leitores e com o fazer literário e tem ainda um pouco de ansiedade, nervosismo. Alegria por agora fazer parte de um prêmio muito festejado por todos os que têm apreço pela literatura em nosso país. E também no exterior, já recebi comentários de leitores de Portugal e Espanha, por exemplo.
A responsabilidade fica por conta dos contatos com os leitores e demais agentes da literatura, todos elogiosos sobre o prêmio, sobre Terra nos Cabelos e sobre a edição do livro pela Record. E ansiedade e nervosismo por tudo que não estava, além do prazer da escrita, no meu horizonte de curto prazo antes do prêmio. Por exemplo: reflexões sobre temas específicos, convites, projetos e entrevistas como esta. Tenho me organizado com o máximo de responsabilidade, sem deslumbramentos, para que este reconhecimento se transforme em incentivo para levar Terra nos Cabelos a mais leitores, para seguir escrevendo e para compreender melhor o meu fazer literário.
Gostaria que você contasse um pouco da sua trajetória como escritor.
A escrita para mim aconteceu como uma conversa interna, principalmente naquele momento da juventude em que a gente tem vontade de conversar sobre as questões que nos são caras, como identidade, relacionamentos e família. Havia ainda a questão da minha homossexualidade, que buscava entender. Assim, na ausência de interlocução, a escrita foi o caminho. Esta escrita íntima já trazia um pouco de poesia. Depois vieram os blogs. E logo mais a primeira oficina de escrita criativa.
A partir desta experiência, o conto tornou-se meu exercício principal e também senti que precisava de mais conhecimento sobre literatura. Nesta busca, cursei a Especialização em Literatura Brasileira da PUCRS e outras oficinas de escrita criativa, como a da Metamorfose Cursos. Na Metamorfose, publiquei meus primeiros textos em coletâneas. Logo ingressei no Grupo de Escrita da escritora Ana Mello, o que me ajudou sobremaneira a concretizar Terra nos Cabelos.
Em 2019, participei da coletânea Planeta Fantástico, organizada pelo Duda Falcão, e da coletânea Ancestralidades: Escritores Negros, da Editora Venas Abiertas. No início de 2020, me inscrevi no Prêmio Sesc e Terra nos Cabelos aconteceu. Agora, no final de 2020, também lancei um livro de bolso – Sobre o Fundo Azul da Infância – na coleção A voz da Ancestralidade, da Venas Abiertas.
Em que período você escreveu Terra nos Cabelos e quando você percebeu que eles poderiam compor um livro?
Comecei a escrever os contos de Terra nos Cabelos lá por 2017, segundo semestre, quando ingressei no Grupo de Escrita da Ana Mello. A intenção era, num primeiro momento, exercitar a forma conto, mas depois se transformou no projeto de um livro, o ato de conclusão do curso na Metamorfose Cursos. No entanto, no fim do processo, comecei a questionar se os contos eram realmente bons ou se seria uma publicação apressada. Também comecei a perceber a fala de alguns escritores consagrados sobre a imaturidade do seu primeiro livro. Então adiei a publicação e segui na reescrita e na busca de leituras críticas durante o ano de 2019. No ano seguinte, aconteceu o Prêmio Sesc de Literatura.
Os 15 contos do livro têm mulheres como protagonistas – e a própria dedicatória é endereçada a mulheres importantes na sua vida. Nos conta um pouco sobre essa centralidade feminina da obra.
A escrita de Terra nos Cabelos aconteceu de forma natural. Só agora, depois do livro pronto, e de questionamentos de leitores, que eu comecei a refletir sobre o porquê de ser um livro só com personagens femininas. Eu sei que foi um exercício de compreensão, de refletir sobre outras perspectivas. E foi um exercício difícil, pois a personagem feminina se mostrou mais complexa, com mais camadas, um desafio maior. O que me exigiu muitas leituras, pesquisas, reflexões para construir as narrativas.
Durante a escrita, eu pensava muito que as protagonistas deveriam ter motivações únicas e serem distantes física e mentalmente umas das outras. Sempre que começava um novo conto, eu me perguntava: qual a diferença desta personagem em relação às que já havia escrito?
Outro ponto sobre o qual refletia é que a vida se dá no movimento, no percurso interno e externo, que todo ser, mesmo inconscientemente, acaba fazendo. E que não cabia a mim resolver a vida das personagens. Então tentei não sobrepor a minha visão de mundo à delas e acompanhei a mudança possível de cada uma durante o tempo da narrativa.
Em relação à dedicatória, tenho a certeza de que todos os livros que eu escrever serão dedicados à minha mãe. Ela, Virginia Caetano, sempre foi meu ponto de apoio, de afeto e de delicadeza no mundo. Tenho três irmãs, que também me ensinaram e ensinam muito. De forma geral, as mulheres sempre estiveram mais no meu radar afetivo e reflexivo. Acho que isso trouxe a naturalidade no momento da escrita de Terra nos Cabelos. E a dedicatória não poderia ser outra.
O texto da contracapa, assinado pela escritora Ana Paula Maia, fala de certa “obscuridade” no conjunto das histórias. Na orelha do livro, Marcelo Moutinho menciona “uma espécie de penumbra” e uma “atmosfera crepuscular”. Ao longo da leitura, de fato, chama atenção a ambientação noturna de alguns contos, bem como encontros, relações e desejos que se dão longe da luz do dia. Como você enxerga essa leitura?
Fiquei muito feliz pela leitura da Ana Paula Maia e do Marcelo Moutinho. O escritor nunca sabe tudo sobre o que escreve. Cada leitor vai construindo um pouco mais do sentido. Ajuda o autor a completar o olhar sobre o próprio texto.
Na minha percepção, o dia está muito ligado ao barulho, ao trabalho, ao produzir algo, ao estar “em função” de outras pessoas. As relações durante o dia são muito mais triviais; a gente se despede muito mais durante o dia. A noite, com seus silêncios, luzes e breus diversos, favorece a reflexão, o mergulho no eu. Longe da luz do dia, da moral coletiva, estamos mais propensos a arriscar, a experimentar, a dar vazão aos nossos desejos.
Obscuridade e penumbra, como bem observaram Ana Paula Maia e Marcelo Moutinho, são também “as nuances do cotidiano absurdo e palpável” a que as mulheres estão mais submetidas. As estatísticas estão aí: o machismo, a violência e o feminicídio estão cada dia mais em alta. A obscuridade segue crescendo.
No entanto, em Terra nos Cabelos, eu não queria trabalhar os contrastes da relação homem e mulher. A minha intenção sempre foi que as personagens tivessem o seu percurso físico e reflexivo em relação a algo que é ou seria delas. Acho que isso faz muito sentido com a “atmosfera crepuscular” de muitos contos. A vida é muito assim, crepuscular, mas a gente, pelas demandas cotidianas, repetitivas, acaba não percebendo. Estamos sempre indo ao encontro de algo que é ou será nosso, como, por exemplo, a verdade (conto Terra nos Cabelos), respostas (No Jardim) ou o fim (Identidade).
A última narrativa do livro, Estômago, traz uma trama muito distinta dos outros textos, apresentando um contexto distópico em que o sul do país enfrenta um inverno catastrófico sem precedentes. Poderia nos contar um pouco mais sobre esse conto e a escolha dele para concluir Terra nos Cabelos?
A ideia inicial do conto Estômago surgiu quando assisti a uma entrevista na TV com um físico e meteorologista sobre resfriamento global. Depois desta entrevista, fui pesquisar na internet e descobri que existem muitas pessoas advogando pelo resfriamento em contraposição ao aquecimento global, perspectiva mais comum. Neste período, nas redes sociais, pululavam posts reeditando o antigo desejo separatista de muitos sulistas brasileiros e também ataques racistas de pessoas do Sudeste e Sul contra os eleitores do Nordeste. Diante destas questões, acabei me fazendo a pergunta: o que aconteceria se ocorresse um inverno catastrófico no sul do Brasil? Assim comecei a compor esta narrativa, pensar na protagonista, na família e a progressão dos acontecimentos até aquele fim.
A escolha de Estômago para concluir Terra nos Cabelos aconteceu por muitos motivos. Um deles foi o seu caráter distópico. Pareceu-me que o conto ficaria perdido em outra posição. Outro foi propriamente o tamanho. Queria uma narrativa longa no final, momento em que o leitor já está mais ambientado com a escrita do livro. Mas o principal motivo foi que eu entendi que a última narrativa não poderia fechar a perspectiva do livro. Há em Estômago uma questão de ensinamento. E, ao fim, seguimos todos lutando contra o resfriamento.
Por fim, você está escrevendo atualmente? Quais são os planos para 2021?
Eu sigo escrevendo contos. É um gênero que me ajuda a pensar, a estudar a escrita e a construir personagens. Também sigo na escrita do meu primeiro romance, um projeto que venho construindo aos poucos – desde antes de Terra nos Cabelos –, que se passa na Porto Alegre dos anos 1970 a e 1990. Espero, em 2021, concluir a primeira versão desta narrativa.
Estou participando ainda da escrita de um romance coletivo – uma produção do Grupo Literário 7×1, formado por egressos do Curso de Formação da Metamorfose Cursos. Uma história ambientada em Uruguaiana.
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Leia também a entrevista de Tônio Caetano ao escritor José Falero, publicada na revista Parêntese #62.
E o texto Nos aproximar como irmãos, de Tônio Caetano, publicado na Operação Falero da Parêntese.