Música | Reportagens

O encontro de Vitor Ramil e Angélica Freitas na “Avenida Angélica”

Change Size Text
O encontro de Vitor Ramil e Angélica Freitas na “Avenida Angélica” Reprodução: Avenida Angélica

Lá se vão mais de 10 anos desde que Vitor Ramil provou pela primeira vez o Rilke Shake de Angélica Freitas. Lançado em 2007, o livro de estreia da escritora foi sugerido ao compositor no ano seguinte, em São Paulo, pelo poeta Augusto Massi, ex-editor da Cosac Naify. O contato com a obra logo se transformou em música e, mais tarde, na construção da Avenida Angélica em Satolep.

“Nas primeiras leituras, já gostei muito e senti música nos versos. Quando voltei para casa, musiquei Vida Aérea. Depois pedi o contato da Angélica, que morava na Holanda. Não sabia nada dela, nem se me conhecia”, recorda Ramil, citando um dos poemas que integra o álbum e espetáculo audiovisual lançados nesta quinta-feira (7/4) – a data dá nome ao Theatro Sete de Abril, em Pelotas, onde o trabalho foi gravado em 2021, e é o aniversário do músico, que está completando 60 anos.

Ramil conta que as faixas de Avenida Angélica – a partir de 13 poemas de Rilke Shake e cinco de Meu Útero É do Tamanho de um Punho (2012) – foram compostas, ao longo de anos, em uma via paralela aos lançamentos de álbuns como Délibáb (2010), que reúne poemas de Jorge Luis Borges e João da Cunha Vargas. “Borges escreveu milongas para serem versos de canção, João da Cunha Vargas tem muita oralidade. A poesia da Angélica também tem uma comunicabilidade de letra de canção”, observa Ramil.

Angélica Freitas. Foto: Dirk Skiba/Cia das Letras

Um dos exemplos mais evidentes dessa característica em Avenida Angélica é R.C., título que alude às iniciais de Roberto Carlos: “Eu cresci/ sobrevivi/ a privada bem de perto/ muitas vezes eu vi/ mas a verdade é que/ quase tudo eu aprendi/ ouvindo as canções do rádio”.

Angélica conta que, na infância, costumava escutar rádio com as empregadas domésticas, que gostavam de cantores como Amado Batista e Gilliard. “Também ouvia música no carro dos meus pais, sempre rádios AM. E aí era comum ouvir o Roberto Carlos. R.C. é uma singela homenagem àqueles tempos de formação sentimental”, conta a poeta, que atualmente vive em Berlim.

Em entrevista ao site em 2020, quando lançou o livro Canções de Atormentar, Angélica falou sobre as relações entre música e literatura em sua trajetória: “A música é muito importante na minha vida, tão importante quanto a literatura. Às vezes acho que é mais importante ainda, que me nutre mais, que me eletriza mais. E me dei conta, há alguns anos, que me interessa mais escrever poemas que possam ser cantados, entoados. E eu também componho umas canções. Um dia quero ir para um estúdio e gravá-las”.

O compositor da Milonga das Sete Cidades (A Estética do Frio), cujos versos falam de rigor, profundidade, clareza, concisão, pureza, leveza e melancolia, aponta o mesmo número de atributos na poesia de Angélica. No caso dela, leveza, humor, crítica, sofisticação, densidade, amorosidade e musicalidade – um shake complexo que levou Ramil “a compor coisas que de outro modo nunca teria composto”, nas palavras do músico. “Foi como se eu tivesse baixado a guarda. Relaxei e me deixei levar.”

Reprodução: Avenida Angélica

Um dos destaques do percurso de Ramil pelos versos de Angélica e por sonoridades inusuais em sua carreira é o blues de Cosmic Cowig Mississipi. O álbum também inclui faixas como Mulher de Malandro e Versus Eu, nas quais a voz de Ramil, acompanhada de elementos percussivos, deixa de lado o violão e flerta com o samba.

A Mina de Ouro de Minha Mãe e Minha Tia narra uma história que novamente remete a memórias da poeta. “Minha mãe nasceu na Colônia de Pescadores Z3, em Pelotas. Ela e uma irmã, Luci, tinham espírito empreendedor e iam vender cosméticos numa ilha na Lagoa dos Patos. As mulheres que lá viviam tinham pouco acesso a cosméticos – tudo que compravam vinha de Pelotas, a cidade mais próxima, mas era preciso empreender uma viagem de bote e depois de ônibus para chegar às lojas”, conta Angélica.

“Elas ganharam bastante dinheiro, pelo menos para os parâmetros delas, mas parece que o mais importante ainda era a aventura. Adorava ouvir esses causos da juventude da minha mãe, e agora que ela não está mais aqui para contá-los, fico feliz por ter escrito esse poema”, completa a escritora.

Em Família Vende Tudo, a autora faz um exercício de imaginação: “Quando morava em São Paulo, muitas vezes vi faixas pelas ruas com essa frase e um número de telefone. E me perguntava: o que aconteceria se uma família decidisse vender tudo mesmo?”.

Após o lançamento do single Rilke Shake, Angélica comentou em seu perfil no Instagram: “O Vitor, como eu já falei anteriormente, é o meu Bob Dylan. E o meu Paul McCartney in one. Desde pequenininha. Tá certo que tive 13 anos pra me preparar emocionalmente e que ficamos muito amigos desde então. Mas ouvir a voz e o violão do Vitor num poema meu…”.

“Já ouvi o Rilke Shake três vezes. E tudo – escrever, esta vida – faz sentido pra mim. É inevitável que os momentos mais importantes da nossa vida soem meio bregas quando a gente conta pros outros, né. Vou fazer agora o que fiz quando recebi o primeiro e-mail do Vitor, em 2009, contanto que tinha musicado um poema meu: vestir o meu casaco e levar meu coração pra andar por aí”, escreveu a poeta.

Emergencial, afetivo e celebratório

Reprodução: Avenida Angélica

Contemplado pela Natura Musical como espetáculo a ser realizado em Florianópolis, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, Avenida Angélica teve que se adaptar à pandemia após uma apresentação experimental em 2019 no Theatro São Pedro. A ideia de uma live acabou ganhando envergadura para virar álbum e audiovisual – com direção e montagem de Renato Falcão e iluminação, cenário e vídeo de Isabel Ramil.

As gravações nas noites de 7 e 8 de agosto de 2021 ocorreram em meio às obras de restauro do Theatro Sete de Abril – o terceiro teatro mais antigo do país –, então sem sistema de calefação e desumidificação. “O jeito foi atuar por entre pisos e paredes de onde vertia água. Isso nos obrigou a abrir mão de alguns microfones que não suportaram o ambiente não controlado. A iluminação também precisou ser improvisada”, conta Vitor.

“Antes da crise sanitária eu já estava trabalhando o repertório do show com um grupo de músicos, visando a realização de um álbum de estúdio. Diante da nova realidade, que não permitiria também a aglomeração em um estúdio de gravação, e que, principalmente, deixara toda a equipe técnica do show sem poder exercer suas atividades por um período indeterminado, optamos pela realização do show de uma maneira que todos os colaboradores pudessem trabalhar sem colocar suas vidas em risco”, explica.

Avenida Angélica ganhou assim um caráter entre o emergencial, o afetivo e o celebratório. Foi guerrilla y aventura. E foi gratificante. Estávamos reencontrando a motivação e trabalhando depois de tanto medo e desesperança”, completa Ramil, que em 2021 publicou na Parêntese parte das dezenas de composições que escreveu durante a pandemia – leia aqui.

Reprodução: Avenida Angélica

Atualmente o compositor trabalha na concepção de um livro-objeto de Avenida Angélica, cria canções a partir de poemas de Paulo Leminski, planeja comemorar nos palcos os 25 anos de Ramilonga e começa a retomar as atividades do projeto Casa Ramil – que inclui, entre outros integrantes da família, Gutcha, Ian, João, Kleiton, Kledir e Thiago Ramil.

Nesta quinta-feira (7/4), às 21h, Vitor Ramil e Angélica Freitas promovem um bate-papo sobre Avenida Angélica no canal de Youtube do compositor.

Gostou desta reportagem? Garanta que outros assuntos importantes para o interesse público da nossa cidade sejam abordados: apoie-nos financeiramente!

O que nos permite produzir reportagens investigativas e de denúncia, cumprindo nosso papel de fiscalizar o poder, é a nossa independência editorial.

Essa independência só existe porque somos financiados majoritariamente por leitoras e leitores que nos apoiam financeiramente.

Quem nos apoia também recebe todo o nosso conteúdo exclusivo: a versão completa da Matinal News, de segunda a sexta, e as newsletters do Juremir Machado, às terças, do Roger Lerina, às quintas, e da revista Parêntese, aos sábados.

Apoie-nos! O investimento equivale ao valor de dois cafés por mês.
Se você já nos apoia, agradecemos por fazer parte da rede Matinal! e tenha acesso a todo o nosso conteúdo.

Compartilhe esta reportagem em suas redes sociais!
Share on whatsapp
Share on twitter
Share on facebook
Share on email
Se você já nos apoia, agradecemos por fazer parte da rede Matinal! e tenha acesso a todo o nosso conteúdo.

Compartilhe esta reportagem em suas redes sociais!
Share on whatsapp
Share on twitter
Share on facebook
Share on email

Gostou desta reportagem? Ela é possível graças a sua assinatura.

O dinheiro investido por nossos assinantes premium é o que garante que possamos fazer um jornalismo independente de qualidade e relevância para a sociedade e para a democracia. Você pode contribuir ainda mais com um apoio extra ou compartilhando este conteúdo nas suas redes sociais.
Share on whatsapp
Share on twitter
Share on facebook
Share on email

Se você já é assinante, obrigada por estar conosco no Grupo Matinal Jornalismo! Faça login e tenha acesso a todos os nossos conteúdos.

Compartilhe esta reportagem em suas redes sociais!

Share on whatsapp
Share on twitter
Share on facebook
Share on email
PUBLICIDADE

Esqueceu sua senha?