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“Filha do Sol”, B.art reflete sobre diáspora, poder e amor em versos e imagens

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“Filha do Sol”, B.art reflete sobre diáspora, poder e amor em versos e imagens B.art. Foto: Edi

Repleto de camadas sonoras e visuais, Filha do Sol é o primeiro álbum da rapper pelotense B.art. Lançado nesta semana com patrocínio da Natura Musical, o trabalho reúne 10 faixas e cinco clipes, concebidos e roteirizados pela própria artista, nos quais versos sobre a diáspora africana, processos de descolonização, ascensão social, poder e amor são traduzidos em imagens igualmente potentes.

“Quando crio a música, já penso como vou reproduzi-la visualmente. Anoto tudo, abro o Google Apresentações, já faço um ppt com o que quero mostrar”, conta B.art, 29 anos, revelando um pouco do seu processo. O empenho da artista em explorar diferentes linguagens se torna evidente para quem assiste aos 15 minutos do álbum visual.

O primeiro clipe, da faixa South by South, tem como locação uma antiga charqueada em Pelotas, às margens do canal São Gonçalo, antiga rota de comercialização de pessoas escravizadas. No local onde é possível imaginar uma sinhá ostentando seus privilégios no período do Império, encontramos B.art ressignificando a cena, protegendo-se do sol com uma sombrinha e cantando: O que fiz pra nascer aqui?/ O que me faz ser daqui?/ Acho que eu nem sou daqui/ Tenho muito pra descobrir.

Na sequência, o álbum visual apresenta o clipe de Yurugu, no qual B.art contracena e canta com seu companheiro, o rapper zilladxg. A artista conta que buscou se aproximar da sonoridade do rock nessa música e trazer elementos de figurino que remetessem ao movimento negro nos anos 1970 e 1980, em especial, aos Panteras Negras. A letra denuncia processos de apagamento histórico e estigmas atribuídos à população negra.

“Quando eram trazidos para cá, os negros eram obrigados a dar voltas em árvores para esquecer da sua história. Nos navios, eram colocadas pessoas de diferentes línguas para que não pudessem se comunicar. Mataram a identidade do negro para apagar essa memória e depois contar uma história única, como fala Chimamanda [Ngozi Adichie, escritora nigeriana]. A negra como empregada doméstica, o negro como escravizado e bandido”, conta B.art, compartilhando algumas das inspirações da faixa.

B.art. Foto: Edi

Nos comentários faixa a faixa ao repórter, B.art ressalta que buscou encadear os clipes de forma cronológica, em termos históricos e estéticos. Depois de aludir ao Brasil Colônia e aos Panteras Negras nos primeiros clipes, em Black Money a ostentação pimp, marcante no hip hop nos anos 2000, é acompanhada de versos sobre ascensão social: Pretas fazendo dinheiro, andando na rua, chamando atenção/ Pretos gastando dinheiro, carregando a lua, no seu cordão/ Pretas tão comparecendo em casa podendo dar uma condição/ Pretos tão enriquecendo, contradizendo o que falam na televisão/ Fugindo da normalidade/ Pretos na universidade/ Nossa arma é o conhecimento/ Vai munindo vários pensamentos.

Após a euforia de Black Money, em I. D. G. A. F. B.art segue evocando a conquista de espaços, mas pondera a necessidade de algum distanciamento para entender esse lugar. No clipe seguinte, os versos e imagens de Dvac situam a reflexão sobre ascensão no que se refere aos impactos do consumo e da exploração de recursos do planeta. O contexto apocalíptico ganha uma nova faceta em Another Day, no qual B.art traja um facequini – vestuário comum entre os chineses para proteger o corpo, incluindo o rosto, da exposição ao sol – e canta versos sobre “o amor como única possibilidade de se manter vivo”, nas palavras da artista.

O itinerário imagético de Filha do Sol não deve parar por aí. B.art conta que deseja criar uma instalação artística inspirada na faixa Fiji, trilha dos créditos do álbum visual, ampliando ainda mais as possibilidades estéticas do trabalho.

As 10 faixas do álbum têm produção musical de Diabelsmusic e participações de Nina Fola, zilladxg, Tay Oluá, Ébano e Marfim e Da Lua.

Preta no Sul

Filha do Sol é o nome de um poema de B.art escrito em 2018 – em meio a estudos sobre o povo kemético, do Antigo Egito – e celebra Ra, deus do Sol. “Ser preto na diáspora é sempre buscar esse lugar onde tu vai te encontrar e entender que esse espaço é teu também. O disco tenta traçar essa história”, conta a artista, relacionando o álbum à sua trajetória.

Embora tenha tido um contato muito próximo com a música e a poesia desde pequena na convivência com o pai, o compositor Odibar (1950-2010) – autor de músicas como Quero Voltar pra Bahia e Pingos de Amor, em parceria com o cantor Paulo Diniz –, B.art trilhou caminhos paralelos antes de se aventurar na carreira artística. Estudou Jornalismo na UFPel, sem concluir o curso, interessada em cobrir a cena local com textos, vídeos e fotos. Em 2016, começou a trabalhar com produção cultural em Pelotas, fundando o coletivo DasMina, com foco na visibilidade feminina no hip hop. Aprendeu a discotecar e, a partir desse envolvimento, começou a ser incentivada a escrever suas rimas.

“As minas que iam tocar na cidade falavam: o que tu tá fazendo que não tá fazendo rap? Isso começou a ficar na minha cabeça. Um dia a Sara Donato e Jupi77er, da Rap Plus Size, chamaram várias minas da quebrada pra gravar um som. Escrevi uma rima, gravei e ficou muito massa. Na mesma semana, fui pra Santa Maria com a Brisa Flow. Tinha um momento pras minas fazerem free style no palco. Subi, fiz e vi todo mundo com a mão pra cima. Depois disso não quis parar mais”, recorda B.art.

Em 2017, a artista passou alguns meses em São Paulo convivendo com a rapper Brisa Flow e, ao retornar a Pelotas, começou a organizar slams, uma novidade na cidade. Criou o coletivo Stay Black com o companheiro zilladxg e fez suas primeiras gravações, entre as quais Recusa e o EP Lo-w Tape, de 2018, com Brisa Flow.

Em 2019 mudou-se para Novo Hamburgo com zilladxg e foi selecionada para a residência artística do Projeto Concha, idealizada pela produtora cultural Alice Castiel Ruas e voltada à atuação de mulheres na música. O encontro aproximou B.art e Alice, que é produtora executiva de Filha do Sol. “Gestamos esse disco juntas no ano passado”, conta a artista, que em 2020 também gestou Zuri, nascida em novembro, sua segunda filha – B.art também é mãe de Aaliyah.

“A residência do Concha foi um processo muito importante. Aprendi muitas coisas que não enxergava e a questão de se empoderar enquanto mulher na música”, conta B.art. “Se eu fosse mulher branca, seria diferente. Se fosse homem branco, seria diferente. Mas sou mulher e negra”, completa, elencando alguns dos insights proporcionados pela experiência com outras artistas. No ano seguinte à residência, em 2020, B.art lançou o EP Astral.

A artista conclui o relato de seu percurso ressaltando a força do rap em Pelotas e no estado como um todo. “O Sul ainda tem muito a falar, como disse o André 3000, do Outkast”, afirma B.art, traçando um paralelo com a cena hip hop no sul dos Estados Unidos. “As pessoas olham pro Sul como a Europa do Brasil, não enxergam que existe movimento negro, cultura preta, hip hop no Rio Grande do Sul, por ser um estado majoritariamente branco e o mais racista do país. O negro é historicamente invisibilizado aqui, e hoje a gente carrega esse peso nas costas. Mas é uma questão de tempo. O trabalho que vem sendo feito é pra mudar essa percepção.”

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