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Beto Bruno finalmente em primeira pessoa

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Beto Bruno finalmente em primeira pessoa Foto: Denise Gadelha/Divulgação

Nesta sexta-feira (11/6), o cantor e compositor Beto Bruno lança O Escudo do Arcanjo Miguel, seu segundo disco solo. Editado pelo Selo 180, o álbum com oito faixas sucede Depois do Fim (2019), primeiro voo individual do músico, lançado exatamente um mês depois do encerramento oficial da banda Cachorro Grande.

O novo trabalho reverbera musicalmente o som do grupo do qual Beto foi vocalista por quase 20 anos, que saiu de Porto Alegre para ganhar o Brasil com seu rock’n’roll influenciado por ícones como Rolling Stones, Beatles e The Who, pelo movimento mod britânico e pela psicodelia sessentista, com um toque de música eletrônica na fase final de sua trajetória. Já do ponto de vista das letras, O Escudo do Arcanjo Miguel apresenta um artista menos interessado em dar voz aos prazeres e angústias da vida moderna e mais preocupado em encontrar um equilíbrio espiritual em tempos turbulentos.

Os títulos das canções confessam um anseio por aceitação e comunhão, costurando o disco com três faixas que se apresentam em primeira pessoa: Eu Quero Ser Igual (que abre o trabalho), Eu Só Quero Cantar Junto no Refrão (no meio) e Eu Quero Ser Normal (tema instrumental de encerramento). Diferentemente do que esses títulos possam sugerir com certa dose de ironia, não se trata de capitular diante do conformismo, mas de celebrar uma conexão mais harmônica e autêntica com o mundo.

Denise Gadelha/Divulgação

Esse desnudamento é ainda mais explícito na faixa-título, balada que se inicia com versos lamentando ausências: “Que saudade tenho do meu pai / Por que você me deixou? / Minha mãe, mesmo longe daqui / Sempre vou estar com você”. Concebido durante a pandemia, O Escudo do Arcanjo Miguel também aborda a realidade triste e estranha que o mundo enfrenta há mais de um ano – especialmente aqui no país, como lembra com dureza a canção Esse Ano Não Teve Carnaval: “E não tem vagas no hospital / Quantas pessoas vão morrer? / Quantas famílias vão sofrer?”.

Produzido por Beto Bruno e Rodrigo Tavarez (que também toca baixo no disco), O Escudo do Arcanjo Miguel tem arranjos do cantor e de Pedro Pelotas – parceiro da Cachorro Grande que ainda toca piano, órgão e sintetizador no álbum. A banda de base inclui Eduardo Schuler na bateria, Pedro Lipatin nas guitarras e vocais de apoio e Sebastião Reis (filho de Nando Reis) no violão e vocais.

Entre os músicos convidados há ainda outro representante de linhagem nobre do pop rock brasileiro: o mineiro Juliano Alvarenga, vocalista e guitarrista da banda Daparte e filho de Samuel Rosa, frontman do grupo Skank, que faz backing vocal na faixa Se a Chuva Não Passar.

Na entrevista a seguir, Beto Bruno comenta O Escudo do Arcanjo Miguel e sobre sua fase artística atual, revela a paixão recente por Milton Nascimento e explica como vem sendo afetado pela realidade brasileira: “Perco o sono e a fome com as notícias diárias. Eu tento sem sucesso manter a tranquilidade emocional, mas, por incrível que pareça, o lado musical e poético parece tomar vida própria por necessidade. Essa música é resultado disso”.

Escute Beto Bruno no Spotify, no Deezer, no iTunes, no Google Play, no Tidal e na Amazon.

Capa do disco. Foto: Denise Gadelha/Divulgação

Como foi o processo de criação desse álbum?

O processo de criação, gravação e produção desse disco não poderia ter sido melhor. É a primeira vez que consigo fazer as coisas com calma e concentração. Todos os discos que gravei antes com a Cachorro Grande e também meu primeiro solo, Depois do Fim, foram compostos e gravados enquanto estávamos em turnê do álbum anterior. Escrevia muita coisa na estrada, terminava as letras pouco antes de gravar e muitas vezes chegava no estúdio sem voz e muito cansado. Infelizmente, só consegui essa tranquilidade toda nas gravações que eu tanto queria por causa dessa pandemia horrorosa que estamos passando.

As letras das canções sinalizam um amadurecimento como compositor, além de apresentarem um tom confessional explícito – três delas estampam já no título o pronome “eu”. Comente um pouco a respeito desses aspectos, por favor.

Quando eu fazia parte de uma banda, eu simplesmente não conseguia escrever na primeira pessoa. Eu achava que as letras teriam que falar sobre algo que representasse todos integrantes e nunca escrevi sobre minha vida pessoal e amorosa. Nunca me senti à vontade. Nesse álbum quebrei essa barreira que eu tanto queria quebrar, e nunca fui tão verdadeiro. Mais cedo ou mais tarde isso tinha que acontecer, e nesse álbum eu consegui chegar aonde queria. O disco é um livro aberto!

Musicalmente, o disco ecoa a sonoridade característica e as influências da Cachorro Grande, em particular da última fase da banda. Como você situa O Escudo do Arcanjo Miguel em relação ao seu primeiro álbum solo e ao trabalho com sua antiga banda?

As influências são as mesmas. Ainda faço o tipo de som que sempre gostei, e isso não vai mudar. A grande diferença é no processo criativo. Minha ex-banda ensaiava muito antes de entrar no estúdio e chegava nas gravações com todos os arranjos prontos e só executávamos o que já havia sido concordado entre todos. Eu sempre achei isso muito frio e calculista, e em alguns momentos não funcionou. Acho que a mágica tem que acontecer no dia da gravação. Não fizemos nenhum ensaio antes de gravar as músicas desse último álbum e nem do meu álbum anterior. Eu mando a demo caseira só com violão e voz para os músicos um dia antes de gravarmos e assim, quando chegamos no estúdio, tudo é novo e fresco e não tem regra nenhuma porque a música não está engessada. Parece um pouco de loucura isso, mas ainda acho que é a melhor maneira de gravar.

Denise Gadelha/Divulgação

A balada Esse Ano Não Teve Carnaval é um retrato duro e amargo da realidade que estamos enfrentando no Brasil com a pandemia, agravada pela irresponsabilidade e falta de empatia do governo diante da crise sanitária. Como esse estado de coisas tem afetado você pessoal e artisticamente?

Estamos passando por uma das piores fases da humanidade, e nosso desgoverno piora a situação dia após dia. Há muito tempo isso já se tornou insuportável e a minha revolta só aumenta. Perco o sono e a fome com as notícias diárias. Eu tento sem sucesso manter a tranquilidade emocional, mas, por incrível que pareça, o lado musical e poético parece tomar vida própria por necessidade. Essa música é resultado disso.

Como ficou o cenário para os músicos com a pandemia, que suspendeu os shows presenciais ao vivo há mais de um ano?

Todo o ramo musical está passando pela pior fase possível. No meu caso, estou há um ano e quatro meses sem subir num palco. Minha equipe e minha banda estão sem trabalho também. Todas as casas de shows estão fechadas, e muitas pessoas trabalham nelas. Mas, muito pior do que isso tudo, são as pessoas que estão morrendo e suas famílias que estão sofrendo.

Estamos enfrentando também uma onda de conservadorismo e autoritarismo que busca ditar as regras nos costumes e na cultura. Como você vê o Brasil de hoje e dos próximos anos?

Esse retrocesso cultural é um reflexo do nosso governo atual que não quer enxergar as diferenças. As informações são manipuladas a favor deles, e muitos de nós também não queremos enxergar. Com certeza acredito que as coisas melhorem no futuro, porque pior do que está hoje não pode.

O que você tem escutado atualmente?

Milton Nascimento. Concordo que demorou muito pra entrar de cabeça no universo dele. Mas veio em melhor hora possível. Sempre ouvi na casa dos outros ou em alguma festa, mas eu mesmo não tinha os discos. No Natal de 2017, a Denise (Gadelha, artista visual, esposa de Beto Bruno) me pediu um disco do Milton de presente e reclamou que na nossa enorme coleção não tínhamos nada dele. Em menos de um mês garimpando nas lojas de LPs aqui do centro de São Paulo, consegui comprar todos os seus álbuns, e de lá pra cá tenho escutado e estudado muito a obra magnífica dele.

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