O direito ao delírio de Pablo Lanzoni e Thiago Colombo
Em meio às incertezas das primeiras semanas de pandemia, em março de 2020, o cantor Pablo Lanzoni convidou o amigo e violonista Thiago Colombo para dar início a uma parceria voz e violão. Passados dois anos de composições e trocas, na maior parte do tempo, à distância, o álbum Delírio Geral chega às plataformas digitais reunindo participações que vão do pianista Celso Loureiro Chaves ao trio de instrumentistas do Bloco da Laje formado por Carólis, Débora Spader e Letícia Rodrigues.
O amplo espectro de convidados orquestrado por Lanzoni inclui ainda Bebê Kramer, Bianca Gismonti, Dany López, Guto Wirtti, Leandro Maia, Leo Bracht, Paola Kirst, Váleria Barcellos e Vitor Ramil. Nas letras do álbum, Lanzoni divide os créditos de duas faixas com Leandro Maia e em outras duas com Richard Serraria.
“Em algumas canções, eu queria reforço na voz, sobretudo para dar mais visibilidade ao texto, como em Deus na Laje e Remanso”, explica Lanzoni. A letra de Deus na Laje, de Leandro Maia, rememora a saída do Bloco da Laje de 2020. A canção tem o violão de Colombo aproximando-se do jongo e do funk e traz Valéria Barcellos cantando os versos: “Quando Deus dançou/ Tinha muitas caras/ A ponte tremeu/ Deus tem tantas caras”. Em Remanso, Vitor Ramil divide os vocais com Lanzoni, colocando em evidência as referências sulistas e platinas da dupla que assina o álbum – entre essas inspirações, o próprio Ramil.
Colombo descreve a construção das participações de Delírio Geral como “a trama de uma série muito boa, com roteiro polifônico”. O enredo múltiplo do trabalho teve a contribuição fundamental do produtor Leo Bracht, que na primeira escuta de gravações caseiras que originariam o álbum sugeriu a Lanzoni acrescentar mais camadas sonoras. “Já tinha falado com o Thiago sobre ter alguns convidados, mas o projeto tomou uma proporção maior”, conta Lanzoni, apontando que sete das oito faixas têm os arranjos de Colombo como matriz geradora – a exceção é Cordel, arranjada por Bianca Gismonti.
Lanzoni e Colombo destacam a dedicação dos artistas convidados para o projeto – do mergulho de Bianca Gismonti e Vitor Ramil recriando ideias, passando por Celso Loureiro Chaves transformando sua participação numa elaborada partitura, chegando à entrega das vozes de Valéria Barcellos, Paola Kirst e Leandro Maia. As gravações foram feitas no estúdio Transcendental Audio, em Porto Alegre, por Leo Bracht, com tomadas adicionais nas casas de alguns dos músicos e em estúdios das cidades onde eles residem.
Desde as primeiras conversas entre os artistas, o projeto foi marcado pelas dinâmicas impostas pela pandemia. “Esse impedimento também gerou outra escuta. Se tivéssemos feito esse mesmo disco, com as mesmas canções e a normalidade que tínhamos até então, o resultado seria outro, porque a troca presencial ainda é distinta. Não sei se faríamos um disco melhor ou pior, faríamos outro. Estou muito feliz com o resultado que alcançamos”, reflete Lanzoni, músico e professor do Instituto Federal do RS – Campus Porto Alegre, ressaltando o respeito aos tempos de cada um como elemento central do processo em torno de Delírio Geral.
Colombo conta que o álbum, tão repleto de camadas e participações, é o trabalho em que mais abriu mão de qualquer vaidade. “Foi uma oportunidade gigantesca criar sem ter a necessidade do protagonismo como músico e do violão como instrumento protagonista”, afirma o instrumentista, professor da Universidade Federal de Pelotas.
A atmosfera intimista do álbum começa soturna, com a faixa-título descrevendo o sentimento de impotência e o pessimismo provocados pela crise político-sanitária brasileira em 2020 e 2021: “Não vai dar pé, não/ São pandemônios no ar/ Jogo da conspiração/ É delírio geral”. Conforme o álbum avança, entretanto, o delírio caótico e desesperado ganha contornos mais suaves e contemplativos – como no questionamento de Eduardo Galeano em O Direito ao Delírio, texto em que o escritor uruguaio pergunta: ¿qué tal si deliramos por un ratito?
Em Sossego, embalado pelo acordeon de Bebê Kramer, Lanzoni celebra a acolhida da intimidade e o desejo de tempos menos apressados. Em Cordel, o álbum levanta voo e alcança o pó da galáxia. Milongrafia traz o céu azul de uma paisagem dos pampas que pulsa no imaginário urbano. Odoyá evoca Iemanjá e a imensidão do mar nos improvisos do violão de Colombo e da voz de Paola Kirst. A nostálgica Interior rememora imagens afastadas dos grandes centros urbanos e celebra a introspecção. “Quero voltar-me pro meu interior”, canta Lanzoni no último verso de Delírio Geral.