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Juliana Cortes liga o Sul ao Sul

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Juliana Cortes liga o Sul ao Sul Foto: Ricardo Lisboa/Divulgação

O terceiro disco de Juliana Cortes consolida uma ponte musical meridional que a cantora e compositora paranaense vem pavimentando desde o primeiro trabalho. Produzido pelo gaúcho Ian Ramil, o recém-lançado Álbum 3 foi gravado entre julho e setembro em Curitiba e Porto Alegre. A obra conta com participações especiais de nomes consagrados como Airto Moreira – um dos percussionistas de jazz mais importantes do mundo –, na faixa Terra Plana, e Pedro Luís, emCores do Fogo. Completam o time de participações, representantes da nova geração como Érica Silva – baixista da banda Mulamba que participa de duas faixas do álbum, Estrela Leminski, uma das poetas convidadas para a escritas das canções, e Rodrigo Lemos, o Lemoskine, compositor e vocal da faixa que batiza o trabalho.

Além do disco, Juliana lança também um minidoc mostrando a residência artística promovida por ela e os bastidores da gravação. Ouça aqui e assista aqui

Desde seu primeiro álbum, INVENTO, Juliana Cortes dialoga com o extremo Sul do país por meio das canções de seu maior parceiro de trabalho: Vitor Ramil. As afinidades com as artes rio-grandenses se estreitaram com a publicação do álbum GRIS,  tornando-se um projeto maior concretizado no Álbum 3. Buscando novas manifestações, interferências e experiências, Juliana convidou artistas de diferentes vertentes musicais dispostos a pensar e questionar as relações estético-culturais das suas cidades e de suas próprias produções. 

De um lado, Estrela Leminski, Rodrigo Lemos e a própria Juliana, de Curitiba. De outro, Ian Ramil, Zelito e Guilherme Ceron, de Porto Alegre. Após quatro dias de residência artística na capital paranaense, em abril de 2019, nove músicas – inteiras ou trechos de canções – foram escritas. As temáticas refletem uma contemporaneidade de linguagem bastante particular, produzida por um coletivo que nunca havia se encontrado, misturando vocabulários vindos do rock, do jazz, da música de concerto, do pop e da música regional. Na seleção final do repertório, outras canções foram adicionadas ao álbum. 

Capa do disco/Reprodução



O disco traz na formação instrumental baixo, guitarra e bateria. Dois trios foram montados: Guilherme Ceron (baixo), Lorenzo Flach (guitarra) e Martin Estevez (bateria), de Porto Alegre, e Du Gomide (banjo, violão e rabeca), Erica Silva (baixo) e Ian Giller (bateria), de Curitiba. Outros instrumentistas enriquecem a sonoridade do power trio: Vina Lacerda (percussão) e Grupo Fato, Carina Levitan (desenho de som), Davi Sartori (piano), Bruna Buschle (contrabaixo), Tomás Piccini (sax) e Jortácio (violão 12 cordas).

Na entrevista a seguir, Juliana Cortes fala sobre Álbum 3, o processo de criação, as influências sonoras, a identificação com o Sul e o futuro do Brasil: “O que será dos próximos anos eu não sei, mas invoco um trecho de Cores do Fogo por aqui: ‘Será fração de um tempo de desconexão? Será o recomeço em outra dimensão?’”.

Álbum 3 promove o encontro criativo entre representantes da cena musical contemporânea paranaense e gaúcha, resultando em um rico panorama das novas sonoridades sulistas. Comente por favor sobre os motivos que levaram você a promover esse diálogo artístico.

Quis experimentar um outro processo de criação e unir de uma maneira mais concreta as duas cidades que nos discos anteriores eu venho aproximando. O Álbum 3 é um encontro de afinidades entre as nossas geografias musicais. Coloquei a minha voz à disposição de novas paisagens, novos fazeres artísticos e novos parceiros musicais. 

Como foi o trabalho coletivo de concepção do disco e sua gravação?

Nós realizamos uma residência artística em Curitiba durante quatro dias, e nesse período compusemos nove temas. Entramos nessa imersão de saber a “cor do disco” e, a partir das reflexões sobre o que nós como artistas independentes teríamos – e temos – a dizer nos dias de hoje, construímos a narrativa do álbum. Somente após a criação dessas poéticas nós entendemos qual seria a sonoridade do trabalho e definimos a instrumentação musical que girou em torno de um power trio: baixo, guitarra e bateria. 

A segunda fase também foi complexa. Quis misturar as “nossas turmas”, dividi o álbum em dois trios instrumentais: um formado por músicos porto-alegrenses e outro por curitibanos. Esse compartilhamento de tarefas, embora tenha dado um trabalho logístico, contribuiu para a originalidade na sonoridade. No show, cujo lançamento está suspenso, o trio que me acompanha é uma mescla entre esses instrumentistas. Gosto de pensar que esse disco é um projeto de troca contínua. 

O disco é mais uma prova da potência da produção musical dos artistas do Sul. No entanto, são raríssimos os projetos que reúnem músicos do Estados meridionais do Brasil: é muito mais comum colaborações de sulistas com representantes do centro do país – e mesmo do Nordeste ou de países como Argentina e Uruguai – do que entre si. Por que você acha que isso acontece?

Acho que alguns projetos colaborativos tendem a buscar uma ampliação de público, e por todo um argumento histórico e político, artistas do Sudeste, talvez Nordeste, podem proporcionar mais visibilidade. Não vejo como algo ruim. Desde que a música tenha um conteúdo original, tudo bem pra mim. O que desejo mostrar com o Álbum 3 é que outros diálogos, de igual interesse e projeção, também podem acontecer. 

Faixas como Andorinhas, Terra Plana e Azul Royal I e II remetem à conexão poético-musical de corte experimental entre Paraná e São Paulo estabelecida por nomes como Paulo Leminski, Alice Ruiz, Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção. Já outros temas como Três e Fôrma ecoam o lirismo e a musicalidade de Vitor Ramil. Comente sobre essas e outras influências em seu trabalho, por favor.

Azul Royal I e II são canções de ficção. Eu canto interpretando um vestido que está esquecido num armário e, de repente, ganha vida para desfilar no Carnaval. Já Andorinhas é um poema musicado escrito em terceira pessoa. Essa estranheza – no sentido de que não são músicas sobre amor ou que falam sobre o “eu” – é meu entendimento sobre o belo. São marcas do meu estudo como intérprete e sempre tive – e tenho – o Arrigo Barnabé como uma fonte de oxigênio. Tive a alegria de gravar uma música que ele e o Dante Ozzetti escreveram pra mim. O Mal virou faixa de disco (GRIS) e um clipe em animação que virou um fenômeno de prêmios internacionais – mais de 60!

Esse gosto por poemas musicados, canções com sujeitos ocultos, viagens no tempo e espacialidades também me conecta com a obra do Vitor Ramil, compositor que vem colaborando nos meus discos. “Se amanhã eu fui feliz”, verso escrito pela Estrela Leminski na música Três, por exemplo, é uma homenagem a ele. 

Como foram as participações de Pedro Luís e, em especial, Airto Moreira, um dos maiores percussionistas do mundo e, curiosamente, um catarinense?

Um disco cheio de presentes! O Pedro Luís divide os vocais comigo na faixa que abre o álbum, música nasce de uma conversa que tivemos sobre os incêndios no Museu Nacional (RJ) e na Ocupação no Largo Paissandu (SP). 

Já o Airto Moreira faz a paisagem sonora da faixa Terra Plana, a canção mais politizada do álbum. Ele mora em Curitiba e aceitou meu convite após ouvir a música. Ao contrário do Pedro Luís, que tenho uma parceria, conheci o Airto no estúdio. Foi um momento inesquecível. Eu e o Ian Ramil ouvimos boas histórias sobre a gravação do Airto com o Tom Jobim nos Estados Unidos e tivemos algumas lições que vamos levar pra vida inteira. 

Foto: Ricardo Lisboa/Divulgação


A produção de Ian Ramil parece ter sido fundamental para a variedade de tons, timbres, sons e climas extremamente sugestivos de Álbum 3. Fale sobre essa parceria com o músico, por favor.

O Ian é um músico excepcional e um produtor muito intuitivo. Os climas, texturas e imagens que o trabalho mostra vêm da criatividade dele e da intimidade que ele tem com o Lorenzo Flach, guitarrista que fez o primeiro levante do repertório com a gente. O DNA experimental do disco é deles. 

Eu já trabalhei com o Fred Teixeira e com o Dante Ozzetti como produtores musicais, e essa parceria é sempre uma viagem. Com o Ian, conseguimos fazer do nosso contraste de personalidade e de linguagens musicais um lugar de interesse na construção da sonoridade do disco e um forte laço de amizade. Isso diz muito pra mim. 

O mercado da música já vinha enfrentando uma grande mudança de paradigmas nos últimos anos com o avanço da internet, a volatização das mídias físicas e o encolhimento das gravadoras. Como ficou o cenário agora para os músicos com essa pandemia do novo coronavírus, que também suspendeu temporariamente os shows presenciais ao vivo?

Devastador. Além do problema que avança aparentemente sem solução sobre a questão da remuneração das plataformas digitais – recebemos menos de R$ 0,01 por play –, enfrentamos a total falta de trabalho em 2020. A economia da cultura, que gera milhares de empregos, está parada. Eu mesma, enquanto respondo esta entrevista, me pergunto como vou pagar o aluguel que vence amanhã. A arte sempre resiste, mas sinto que será às custas de muitas perdas. 

Além da tragédia provocada pela pandemia do novo coronavírus, estamos enfrentando no mundo uma onda de conservadorismo e autoritarismo que por aqui é endossada pelo governo federal. Como você vê o Brasil de hoje e dos próximos anos?

O país que eu vejo está neste álbum. Um Brasil que cala mulheres, manipula informações, questiona a ciência e não mede seus prejuízos. O que será dos próximos anos eu não sei, mas invoco um trecho de Cores do Fogo por aqui: “Será fração de um tempo de desconexão? Será o recomeço em outra dimensão?”.

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