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Léa Freire redescobre o piano

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Léa Freire redescobre o piano Léa Freire no vídeo "Tempestade". Reprodução: Maritaca Discos

Compositora, arranjadora e dona do selo Maritaca Discos, Léa Freire é um dos destaques do Unimúsica – Forrobodó: Quando Elas Tocam, festival online que a UFRGS promove de 14 a 18 de setembro. A renomada flautista apresenta-se na terceira noite do evento com um repertório voltado ao álbum Cinepoesia, lançado em julho, no qual Freire toca piano. Outra particularidade do mais recente trabalho da instrumentista são as versões audiovisuais das músicas, fruto de uma parceria com o ator e realizador Lucas Weglinski.

Ao elencar as plataformas em que os vídeos estão disponíveis, ponderando que não encontra tempo para acompanhar todos os canais, Freire dá mostras de seu bom humor: “Tenho que estudar piano, porque é muito difícil, cara!”, conta a compositora, que há cinco anos retomou sua dedicação ao instrumento – e ao metrônomo Winter. “Eu tinha um ódio mortal do metrônomo, hoje eu amo de paixão. Ele torna tudo possível. O Wilson, de O Náufrago, é o meu Winter”, completa.

A redescoberta do piano provocou certo estranhamento entre os desavisados que escutaram a produção recente de Freire. A instrumentista lembra da pergunta frequente que precisou responder: “Mas é você tocando?”. Em 2015, após um show ao piano no Centro Cultural Kirchner, em Buenos Aires, um fã brasileiro chegou a lhe dizer: “Nossa, Léa! Agora eu sei que é verdade”, conta a pianista.

Para dirimir qualquer dúvida, os vídeos do álbum Cinepoesia mostram Freire diante do piano ao longo de 12 faixas. “Eu pensei: vamos filmar, daí não tem mais o que discutir”, diverte-se a compositora, que já está gravando o disco Cinepoesia II, novamente ao lado de Lucas Weglinski. “Se eu fosse o Tom Jobim, que eu não sou – fique bem claro! –, o Lucas seria o meu Vinícius de Moraes, só que na linguagem audiovisual”, compara Freire.

No vídeo de Turbulenta, primeira faixa de Cinepoesia, Weglinski e Freire constroem um diálogo da música com imagens de locomotivas, que marcam a história do cinema desde os primeiros experimentos dos irmãos Lumière.

Do popular ao erudito

Nascida na cidade de São Paulo, em 1957, Freire teve seus primeiros contatos com a música no Ginásio Estadual Vocacional Oswaldo Aranha, onde começou a tocar flauta doce. Aos 15 anos, ganhou do pai uma flauta transversal, com a qual, pouco tempo depois, começou a se apresentar em público. Aos 16, ingressou no Centro Livre de Aprendizagem Musical (CLAM), onde estudou violão, flauta e piano.

Mais tarde, Freire também aprendeu a tocar saxofone e, em meados dos anos 1980, integrou o grupo Kali, formado só por mulheres. Mas a experiência com o sax tinha seus inconvenientes. “Aquilo doía muito: pescoço, dedo, boca… Pensei: piano não dói, flauta não dói. Não vou ficar tocando instrumento que dói, tô fora! E ainda tem a novela da palheta. Quando ela fica boa, estraga”, desabafa a instrumentista.

Nos anos 1990, em paralelo à atuação nos palcos, Freire – que é formada em Administração – trabalhava como diretora financeira de uma empresa. “Andava de tailleur na FIESP, mas isso não dava certo com o meu DNA, sabe? Acabei ficando doente. Meu psiquiatra falou: ‘Você precisa dançar, sair, tocar’. Eu falei: ‘Escreve isso aí. Se a minha família falar qualquer coisa, digo que o meu médico mandou’”, recorda a compositora.

Freire enfrentou a crise existencial e profissional unindo seus conhecimentos de gestão e música. Em 1997, fundou o selo Maritaca Discos, que já gravou mais de 50 discos com grandes nomes da música instrumental brasileira. No mesmo ano, a compositora lançou pela Maritaca seu primeiro disco autoral, intitulado Ninhal, com participação da cantora Joyce, na faixa que abre o álbum.

A parceria com Joyce surgiu de forma inusitada, num período em que ambas gravavam no mesmo estúdio. A cantora foi apresentada à música Samba de Mulher, composta por Freire, e de pronto criou a letra da canção. À época morando em Sorocaba, Freire ficou sabendo da nova versão por telefone. “Ninguém me perguntou, mas eu adorei. Virei parceira da Joyce a distância e à revelia. Tipo eleição de síndico: você não vai, e acaba eleita. Mas, claro, a parceria da Joyce foi um presente”, recorda.

Em 1999, dois anos depois de Ninhal, Freire lançou Quinteto, formando um grupo com o saxofonista e flautista Teco Cardoso – com direito à apresentação na lendária casa de jazz Blue Note, em Nova York, na turnê do conjunto pelos Estados Unidos.

Quem também ocupa um lugar marcante entre as parcerias de Freire é o saxofonista Bocato. Em 2005, eles gravaram Antologia da Canção Brasileira, com dois volumes dedicados à música nacional. “Foi o hit parade da Maritaca. O pessoal comprava e falava assim: isso aí é bom pra namorar, não tem letra pra ficar distraindo. A união da flauta baixo com o trombone, ideia do Bocato, deu uma liga maravilhosa”, lembra a flautista.

No ano seguinte, a compositora grava Waterbikes, em nova parceria – dessa vez, com o pianista dinamarquês Thomas Clausen.

Ainda em 2007, comemorando seus 50 anos de idade e dez anos da Maritaca, Freire lança Cartas Brasileiras, com repertório repleto de participações e tipos de formação – do duo, passando por grupo de choro e quinteto de jazz, até orquestra completa, com instrumentistas da Orquestra do Estado de São Paulo e regência do maestro Gil Jardim.

Cartas Brasileiras também apresenta os primeiros arranjos sinfônicos escritos por Freire, nas faixas Caminho das Pedras, Nove Luas, Maré e Vento em Madeira. Esta faixa, a propósito, dá nome ao grupo formado entre 2009 e 2018 por Freire, Edu Ribeiro, Fernando Demarco, Teco Cardoso e Tiago Costa, com participações de Mônica Salmaso – em 2010, o Vento em Madeira lançou um disco homônimo.

“O mais interessante do Vento em Madeira”, brinca Freire, “era a maneira como eu seduzia as pessoas a ensaiar. Fazíamos o ensaio de manhã com direito a almoço. E a cozinheira fazia estrago. Rango total, heavy metal! Era o jeito do povo ficar muito feliz de ensaiar”, recorda a anfitriã.

No palco com Rosinha de Valença, homenageada do Unimúsica 2020

Em meio às lembranças de sua trajetória, Freire conta que participou, como música acompanhante, do show Festa, em 1982, junto a Isaurinha Garcia, Nana Caymmi e à artista homenageada do Unimúsica 2020, Rosinha de Valença (1941-2004) – o festival preparou cinco vídeos em que as instrumentistas convidadas interpretam uma música de Rosinha.

“Isso é que nem saber quem matou a Odete Roitman”, brinca Freire, ao mencionar que, aos 63 anos, já subiu ao palco com a homenageada do Unimúsica 2020 e é a artista de mais idade do evento, dedicado totalmente a mulheres instrumentistas. “Na época da Rosinha era um tabu conseguir visibilidade sendo música. Temos que tirar vários chapéus para ela”, reflete.

Às voltas com projetos previstos para 2021 e aulas de bateria – “melhora muito o desempenho rítmico da gente, acho importante” –, Léa Freire celebra a retomada dos estudos de piano e a independência proporcionada pelo instrumento: “Flautista é dependente: a não ser que vá tocar solo, precisa sempre de acompanhamento. Pianista não, você vai lá, e pronto. Ô, delícia!”.

Escute Cinepoesia e assista a todos os vídeos do álbum.

Confira a entrevista com a clarinetista Joana Queiroz, que se apresenta na última noite do Unimúsica 2020.

Leia o perfil da musicista Nina Fola, que canta na abertura do evento.

Confira também a conversa com a cantora Maria Beraldo.

Para saber mais sobre a edição deste ano do festival, leia a reportagem da jornalista Ana Laura Freitas, uma das curadoras do evento.

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