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Maria Beraldo inquieta

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Maria Beraldo inquieta A cantora Maria Beraldo. Foto: Jonathan Wolpert

A instrumentista e cantora Maria Beraldo apresenta-se na segunda noite do festival Unimúsica 2020, que será realizado pela UFRGS entre os dias 14 e 18 de setembro, em modo totalmente online. Integrante dos grupos Quartabê e Bolerinho, com um álbum solo lançado – Cavala (2018) –, Beraldo tem uma trajetória musical que inclui parcerias com artistas como Arrigo Barnabé, com quem ela já subiu ao palco do Unimúsica, em 2015, apresentando o show do disco Claras e Crocodilos (2014).

Nos últimos meses, em meio à pandemia, Beraldo trabalha de casa e no seu estúdio, compondo trilhas para filmes e produzindo outros projetos. “Foi bom parar e tocar um pouco, porque as coisas continuam andando dentro da gente. Pude elaborar e mostrar uma parte minha que não é necessariamente a que vai estar num disco. Sinto que estou assimilando ideias e tendo outras vontades”, conta a instrumentista, referindo-se às gravações para o Unimúsica.

Beraldo prepara quatro vídeos para o festival: três músicas solo e uma em colaboração com as demais musicistas da transmissão do dia 15 de setembro. Esse formato foi definido pelo evento para contornar as limitações do distanciamento social e das transmissões por streaming, reservando o momento ao vivo para conversas entre as artistas após as apresentações.

Em sua participação solo – tocando guitarra, clarinete e drum machine –, Beraldo apresentará duas improvisações e uma terceira música em que, além de tocar os instrumentos, lê um texto que escreveu depois de assistir a Ninfomaníaca (2013), do diretor dinamarquês Lars Von Trier.

“O filme mexeu muito comigo. Todo o universo da sexualidade é muito forte para mim. A gente tenta enquadrar nosso desejo dentro de uma vida social – da normalidade, dos limites – que é uma loucura por si só”, reflete Beraldo, que já apresentou uma versão da música com o grupo Teto Preto, na Virada Cultural de 2019, em São Paulo.

De Florianópolis para Campinas

Beraldo nasceu em Florianópolis, em 1988, filha de dois músicos. Seu pai, Rafael Bastos, é etnomusicólogo com mestrado e doutorado sobre a cultura do povo indígena Kamayurá. A mãe, Sílvia Beraldo, estudou na Berklee College of Music de Boston, nos Estados Unidos. Também instrumentista, compõe trilhas sonoras e tem uma escola de música na capital catarinense.

“Durante a infância e adolescência fiz as aulas que quis na escola. Tinha banda, fiz coral, aulas de flauta doce, bateria, piano… Foi um grande privilégio ter acesso a tudo isso”, recorda Beraldo, que cresceu ouvindo música brasileira, jazz e instrumentistas como Hermeto Paschoal.

Aos 17 anos, a instrumentista ingressou no curso de música da Unicamp, em Campinas, onde também fez mestrado em práticas interpretativas. Ao longo de sua formação, aprofundou-se nos estudos em clarinete, criou os grupos Cumieira e Bolerinho – que ela integra até hoje – e aproveitou o ambiente de autonomia proporcionado pelo ambiente universitário e pela vida em outra cidade.

“Teve uma função de conviver com pessoas de outros cursos, estar longe dos meus pais, aprender sobre a vida… Estudei também, mas as festas foram tão importantes quanto o estudo”, diverte-se Beraldo, lembrando que os anos em Campinas, fora da universidade, também a aproximaram do rock e da música eletrônica. “Foi um período muito importante, no sentido de aprender e de desaprender.”

De Campinas para São Paulo

Em 2013, após concluir o mestrado, Beraldo foi morar em São Paulo, estimulada pelo convite do compositor Arrigo Barnabé – professor na Unicamp – para integrar seu grupo. “Meus parâmetros mudaram muito quando ele entrou na minha vida mais definitivamente”, destaca a instrumentista. Em 2014, ela gravou com Barnabé o disco Claras e Crocodilos, uma releitura do álbum Clara Crocodilo – lançado pelo artista em 1980 e considerado um dos marcos da Vanguarda Paulista.

Confira a íntegra do show de Claras e Crocodilos apresentado no Unimúsica 2015:

Os vocais e melodias desafiadoras do álbum – e de suas apresentações performáticas – levaram Beraldo a fazer aulas de canto com a musicista Regina Machado, que havia sido sua professora na Unicamp. “Ela fez um trabalho de descobrir comigo o que eu queria cantar. Nesse processo, comecei a compor, estudando o disco Jóia, de Caetano Veloso. Entendi que cantar tinha muito a ver com compor”, lembra.

Em São Paulo, a partir do contato com a cena musical da cidade, Beraldo tocou, entre outras parcerias, ao lado de Iará Rennó, e formou o grupo Quartabê, no qual toca atualmente com o músico Chicão (Rafael Montorfano) e outras duas convidadas do Unimúsica 2020: Joana Queiroz e Mariá Portugal – confira a programação ao final da matéria.

A mudança de Beraldo para São Paulo também teve um papel importante na afirmação de sua orientação sexual. “Não convivia com lésbicas. Tinha poucos amigos gays, alguns não assumidos, outros não tão próximos”, conta a instrumentista, que passou a ter um contato maior com outras mulheres homossexuais.

“Também tem a ver com mudar de ambiente musical. Estava muito no jazz, na música instrumental e na canção, que são ambientes muito homofóbicos. Das instrumentistas brasileiras da geração um pouco mais velha que eu, não sei de nenhuma lésbica assumida. E com certeza tem lésbicas”, reflete Beraldo. “Entrar num mundo bem mais livre nesse sentido, que é o da música mais pop, foi determinante para mim”, completa.

Beraldo aponta também a pressão que existe sobre as mulheres em suas carreiras. “Você vai ter algumas barreiras, vai se sentir muito mais insegura. E para dar alguns passos em outra direção, você precisa ter segurança. Com o tempo fui encontrando a minha. Acho que não é à toa que, quando isso aconteceu e consegui sair do armário – quando fiquei em paz e encontrei uma força nisso –, meu trabalho artístico cresceu muito”, conta a cantora.

Gatas sapatas

O percurso de Beraldo até sua chegada em São Paulo e as experiências transformadoras que viveu na metrópole deram como fruto seu primeiro álbum solo, Cavala. Em uma das faixas mais marcantes do disco, Beraldo resgata a história das mulheres de sua família – insight despertado pela escuta dos famosos versos sobre o pai paulista, o avô pernambucano e o bisavô mineiro de Chico Buarque em Paratodos.

“Nosso jeito de ver a genealogia é através da história dos homens. Estava com essa sensação muito forte de que a minha história é a história das mulheres”, conta a instrumentista. Dessa reflexão, surgiu a canção com o sugestivo título Maria, em que Beraldo canta: Minha mãe não era, é/ Minha vó nasceu no interior de mim. Na última estrofe, a cantora completa: Minha vó nasceu no interior de Minas/ E se matou por lá também/ Minha bisavó baiana eu imagino só.

“Teve um momento em que senti de forma muito forte que eu não era só eu. Eu era minha mãe, minha vó e todas as outras mulheres. Isso teve a ver com o movimento dos últimos anos – de termos mais consciência do lugar da mulher numa estrutura patriarcal e machista – e com a minha saída do armário. Me deu uma sensação corporal diferente em relação a todas essas questões”, descreve a cantora.

Em Amor Verdade, outra faixa de Cavala, ao diálogo com as questões familiares soma-se a abordagem da sexualidade: Pai, gosto muito dos homens, sim/ De tê-los ao alcance da boca, sim/ Mas no calor da manhã quem me fez delirar foi uma mulher/ Como é minha mãe. E em Gatas Sapatas a cantora segue na desconstrução de padrões heteronormativos com os versos: Gatas sapatas mães de bebê/ Tão sexy com seu sling/ Tão sexy com seu bebê/ Tão sexy sem seu sling/ Tão sexy sem seu bebê.

Construção e desconstrução, nos palcos e nos botecos

Numa tarde no início de setembro, em conversa por vídeo em meio ao isolamento social, Beraldo fala sobre como se sente dois anos após o lançamento de Cavala: “Depois que passou um certo tempo, fiquei pensando que tipo de artista eu sou, onde quero estar, que tipo de carreira quero construir. Foi um trabalho que me permitiu muitas coisas, e estar sozinha foi muito importante. Gosto do disco, mas não me sinto mais naquele lugar. Estou em outro momento”.

A cantora ressalta sua atuação em outros grupos; a participação em projetos como o disco Deus É Mulher (2018), de Elza Soares, no qual Beraldo toca e assina os arranjos de sopro; a concepção de trilhas sonoras para filmes; e a direção musical de espetáculos, como a montagem brasileira de Lázarus, de David Bowie e Enda Walsh, dirigida pelo dramaturgo Filipe Hirsch.

“Estou tentando descobrir que tipo de carreira quero construir. Sei que vou descobrir na medida que for construindo, mas percebi muito logo que quero seguir com esses outros trabalhos. Acho que o meu maior valor está em participar desses projetos. Sou também uma cantora”, explica a artista, enfatizando sua atuação múltipla.

Desconstruindo padrões em versos, composições e improvisos, Maria Beraldo segue em movimento com uma escuta atenta aos desencaixes musicais e existenciais que experimenta ao longo de sua trajetória: “Não quero abrir mão de ir num boteco tocar música esquisita com meus amigos. É isso que me instiga. Preciso ouvir coisas que me tragam deslocamento.”

Programação Unimúsica 2020 – Festival Forrobodó
De 14 a 18 de setembro, às 20h
Confira os canais de transmissão, em breve, no site da Difusão Cultural da UFRGS.

14/9 – Alzira EJosyaraLívia MattosNina Fola e Gabriela Machado
15/9 – Simone SoulLilian NakahodoAna Karina SebastiãoAnge Bazzani e Maria Beraldo
16/9 – Cristina BragaLéa FreireCarol PanesiMariá Portugal e Gabriela Vilanova
17/9 – Lucinha TurnbullNatália CarreraDenise FontouraClarice Assad e Bianca Gismonti
18/9 – Ayelen PaisRenata RosaSimone RasslanMaíra Freitas e Joana Queiroz 

Confira a entrevista com a clarinetista Joana Queiroz, que se apresenta na última noite do Unimúsica 2020.

Leia também o perfil da musicista Nina Fola, que canta na abertura do evento.

Para saber mais sobre a edição deste ano do festival, leia a reportagem da jornalista Ana Laura Freitas, uma das curadoras do evento.

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