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Sete canções para entender a arte polimorfa de Alfamor

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Sete canções para entender a arte polimorfa de Alfamor Foto: Ana Alexandrino/Divulgação

Criadora inquieta que se expressa em linguagens como literatura, artes visuais e tatuagem, Alfamor – autodenominada artista polimorfa – estreia em disco autoral com ONÇA (YBmusic), que será lançado nesta sexta-feira (4/9). A pandemia da Covid-19 atrasou todo o planejamento da artista: a ideia inicial era lançar o disco em abril.

Com sete faixas produzidas por Saulo Duarte, o álbum reúne faixas como Morada, uma parceria com a dupla argentina Perotá Chingó, e uma série de participações de nomes da novíssima música brasileira, que incluem Mateus Aleluia em Paô, a Mãeana e Arthur Braganti em Sideral Sinistro e Bruno Capinan em Babylon.

ONÇA é um álbum de composições autorais que aborda, em suas letras, temas contemporâneos e reflexões sobre ser mulher, autoconhecimento, política e espiritualidade. Nos arranjos, a ancestralidade do tambor se faz presente, aliado a sonoridades como o reggae, o rock e latinidades – tudo sob uma ótica pop contemporânea, em que Alfamor alterna o registro vocal entre a suavidade e a visceralidade.

Foto: YBmusic/Divulgação

Gaúcha radicada atualmente em Salvador, Alfamor atuou como compositora, percussionista e na produção visual da Xanaxou – banda de mulheres originária do Rio de Janeiro –, e agora segue na música nesse projeto solo. A artista teve uma música gravada por Tulipa Ruiz e Adam Jodorowsky – parceria com Ava Rocha, Saulo Duarte, Gustavo Ruiz e a própria cantora Tulipa: Terrorista del Amor, no disco Tu (2017).

Na entrevista exclusiva a seguir, Alfamor comenta o disco ONÇA, destaca os diálogos criativos com jovens artistas, explica o conceito de arte polimorfa e convoca a mobilização contra o reacionarismo vigente: “Se queremos revolução, temos que ser parte dela”.

Foto: Bárbara Bragato/Divulgação


Como foi o processo de gravação de ONÇA? As sete faixas do álbum nasceram em uma mesma leva ou foram surgindo em momentos distintos?

Foi bem espaçado. Por conta da falta de recursos financeiros para realizar o disco, ele foi feito, quase em sua totalidade, através de trocas, respeitando os tempos possíveis de cada um que participou. Começamos as gravações em maio do ano passado, quando tivemos quatro dias de processo de gravação de todas as bases – que foi super rápido à medida que foi muito fluido todo o processo com os meninos –, e em setembro voltamos ao processo indo a Salvador para gravar com Seu Mateus Aleluia, e no retorno a São Paulo o restante dos instrumentos e vozes.

Uma das características desse trabalho é o caráter colaborativo, tanto em coautorias nas canções como em participações nas gravações. Comente sobre essas parcerias artísticas, por favor.

Totalmente! Esse trabalho não seria possível com todo apoio que recebi dxs meus parceirxs. Saulo, primordialmente, é alguém fundamental. Ele quem me instigou a gravar minhas músicas. Eu sempre fui um tanto tímida, e na música sempre pisei devagarinho, com muito respeito. Sem a força dele não sei se teria tido a coragem de tomar partido de gravar minhas canções. E, assim, ele foi parceiro direto em todas, pegando minhas letras e melodias, decifrando e lapidando-as, dando seu toque tão especial como produtor e músico maravilhoso que é. Outra pessoa que também esteve nesse processo de praticamente “me tirar pra fora” (rs) foi meu amado mestre Aleluia. Ele sempre foi meu ícone maior na música, e além música. Tornar-me amiga dele foi um presente que eu jamais esperaria do universo. E assim que ficamos mais próximos ele também começou a me cutucar para começar a cantar. Eu realmente não sei o que ele via em mim, ainda tão contida. Mas sempre me aconselhava a desprender-me do meu medo e libertar minha sensibilidade musical, que ele dizia que era fortíssima. Depois dessa realmente se eu não saísse do armário eu estaria sendo muito tola com toda a sintonia que rolou. As demais participações são amigues de longa data, só gente linda e amorosa. Realmente há muito afeto envolvido.

As letras de ONÇA abordam temas relativos à condição da mulher na contemporaneidade, ao autoconhecimento, à política. São assuntos centrais para muitos dos representantes da nova música brasileira atual de qualidade – acrescidos de abordagens a questões de identidade de gênero e raça. Você vê alguma tendência comum nesse diversificado panorama musical? Quais seriam os nomes com os quais seu trabalho se identifica mais?

Acho que essa tendência se dá pela necessidade de pautar essas questões. Já estamos em 2020 e isso tudo ainda tão retrógrado… Acredito que a música, assim como as diversas expressões artísticas, são nossa maior arma de transformação da sociedade. Eu me identifico demais com os nomes que estou tendo a honra de receber nesse trabalho. Aleluia é totalmente político, expandindo isso à espiritualidade; Saulo, Bruno e Mãeana, Perotás, Camila Costa, todxs têm canções fortíssimas também. E, expandindo para além dos meus parceirxs, Nina Simone é um farol que nos levantou uma questão que anda lado a lado comigo: “Como ser artista e não refletir sua época?”.

Os tambores de matriz africana e as sonoridades latinas são duas recorrências no seu trabalho. Quais são suas principais referências musicais?

Eu não quero ser repetitiva, mas meus parceirxs me inspiram muito! (rs) Eu poderia repetir aqui todos esses nomes que me acompanham e acrescentar alguns pilares: Milton Nascimento, Gilberto Gil, Rita Lee, Baby, Gal Costa, Djavan e, além de Aleluia, seu grupo originário, Os Tincoãs.

Seu trabalho é cosmopolita e ecoa manifestações culturais de variadas procedências. Você identifica alguma influência de sua origem gaúcha em suas criações?

Olha, gaúcha exatamente não sei (rs). Acho que mais em relação a Porto Alegre ser uma cidade bem “latino-americana”, que me deu uma base musical bem diversa em ritmos latinos. Sou filha de pai argentino também, o que me fez agarrar muito a cumbia, por exemplo. Mas, no mais, me considero uma cidadã do mundo, passei anos nômade, absorvendo muita coisa por minhas viagens.

Foto: Ana Alexandrino/Divulgação

A música é apenas uma das linguagens com as quais você se expressa com o que chama de arte polimorfa, que inclui também uma dimensão espiritual e abarca mesmo a vida cotidiana. Você pode comentar mais sobre esse conceito?

Esse conceito pra mim é lei. Desde quando comecei a criar sinto quase que como uma missão unir a arte com espiritualidade e/ou revolução. Tudo bem fazer arte só pela beleza do que é, mas pra mim faz mais sentido quando tem propósito, alcança a máxima potência do que a arte pode ser. A arte me salva todo dia, me faz me entender e entender o mundo. Creio que o mínimo que posso fazer é retribuir isso de alguma forma, como um serviço transcendental.

Como você vê o Brasil de hoje, em que o conservadorismo e o reacionarismo avançam na sociedade e o governo federal é francamente hostil à cultura, ao conhecimento e às causas progressistas e ambientais?

Vejo praticamente com os olhos cheios de lágrimas (risos/choros). É muito triste ver o Brasil, um país com tanto potencial, sofrendo esse ataque retrógrado. Somos um país de mistura de raiz, aqui a diversidade devia ser celebrada, mas infelizmente não é isso o que acontece. Nossa cultura, assim como nossa natureza, tão rica, é praticamente desmotivada com este governo. Temos que ter muito amor à nossa arte para seguirmos fazendo, pois a dificuldade é imensa. Mas, apesar de tudo, sou muito orgulhosa de fazer parte dessa geração revolucionária que está tentando frear tudo isso através de nossos movimentos. Porque, né, se queremos revolução, temos que ser parte dela.

Assista ao clipe de Sábado Sangue:

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