Música | Reportagens

Uma fênix sangrando a caretice

Change Size Text
Uma fênix sangrando a caretice Ave Sangria. Foto: Helder Tavares/Divulgação

Com apenas um disco, lançado em 1974, a Ave Sangria causou furor na cena musical psicodélica pernambucana de meados dos anos 1970 com sua inventividade desconcertante. Surgida em 1969, a banda inicialmente se chamava Tamarineira Village, em homenagem ao bairro em que moravam no Recife e a um hospício da região com mesmo nome. O nome Ave Sangria, dizem, saiu da cabeça do vocalista Marco Polo, que imaginou uma ave de sangue sobrevoando a cidade – e também por conta de uma provocativa associação com a Ave Maria.

Os integrantes usavam batom, se beijavam na boca em pleno show e cantavam sobre moças mortas no cio, piratas, viagens de ácido e o amor de um rapaz por um homem mais velho: a debochada canção Seu Waldir causou escândalo na sociedade recifense, foi censurada e levou à proibição do álbum homônimo e seu recolhimento em todo o território nacional, provocando o fim precoce do grupo – justamente quando as gravadoras estavam de olho no potencial dessa espécie de “Quinteto Violado udigrudi”.

Os três integrantes originais da Ave Sangria: Paulo Rafael, Almir de Oliveira e Marco Polo. Foto: Flora Negri/Divulgação

Quase 45 anos depois, a Ave Sangria ressurgiu das cinzas qual fênix com um novo disco, Vendavais (2019), apenas o segundo da carreira da mítica formação. Redescobertos por uma novíssima geração, os integrantes originais sobreviventes Marco Polo (voz e composições), Almir de Oliveira (voz, guitarra e composições) e Paulo Rafael (guitarra) se reuniram para traçar novos planos de voo. Estimulado por uma série de shows realizados pela banda a partir de 2014, o trio revirou o baú do tempo e de lá saíram 11 canções inéditas, compostas no período de 1969 a 1972 – a instrumental Em Órbita, de Paulo Rafael, é a única composta na época da gravação do disco.

Pouco mais de um ano depois do lançamento desse segundo disco oficial, a Ave Sangria acaba de divulgar o primeiro clipe da história do grupo: a música título Vendavais ganhou vídeo dirigido por Pablo Polo, filho de Marco Polo, rodado em um casarão do Coletivo de Teatro Magiluth.

“Passei um tempo escutando a música e tentando encontrar um fio de inspiração para ancorar a narrativa. Trechos dela chamaram a atenção e daí veio uma forte relação de opressão versus ação para se libertar e para ser si mesmo”, conta Pablo. Assim, surgiu a ideia de chamar performers para vivenciar e materializar essa mensagem. 

Na entrevista exclusiva a seguir, o cantor e compositor Marco Polo fala sobre a trajetória e a importância da obra da Ave Sangria, as influências da banda, seu renascimento e o clipe novo, além de traçar um paralelo entre o Brasil que censurou Seu Waldir e o país de hoje: “Vivemos numa ditadura disfarçada. Um clima de nazifascismo desavergonhado. Temos que estar alertas o tempo todo”.

Como foi a gravação do clipe de Vendavais? A banda participou da concepção do conceito com o diretor Pablo Polo?

Eu, Almir e Paulo tivemos várias reuniões com Pablo Polo no processo de elaboração do conceito do clipe. As ideias foram surgindo, se modificando, morrendo, nascendo, até chegarmos à concepção final que foi dada pelo diretor. A ideia base seria relacionar repressão e libertação, inércia e dinâmica, envolvendo não só os componentes da banda, nós três mais o baterista Júnior do Jarro, o percussionista Gilu Amaral e o baixista Juliano Holanda, mais um grupo de performers, atores e bailarinos, para contracenar conosco. O clima foi de muita alegria e disposição, até porque o pessoal todo é fã da nossa música. Houve muito improviso também. O diretor Pablo nos orientou, mas também deu muita liberdade de ação e expressão. O resultado, a meu ver, traduz esse clima, ou esses climas todos. A aprovação pelo clipe devidamente editado foi total.

Como foi retomar o voo da Ave Sangria quase 45 anos depois? O que mudou artística e musicalmente na banda neste tempo todo?

Mudou o fato de três dos componentes originais da banda já terem falecido: o guitarrista Ivinho, o baterista Israel Semente e o percussionista Agrício Juliano Noya. Mas nós três continuamos com a mesma energia de antes, a mesma vontade de criar, provocar, instigar. Fizemos esse segundo disco como se fosse no ano seguinte à gravação do primeiro, quer dizer, é uma continuidade. Tanto que, com exceção da música instrumental Em Órbita, composta no estúdio, todas as outras composições foram feitas na década de 1970. Queríamos manter a nossa sonoridade, o nosso modo particular de fazer arranjos, a liberdade de tocar ritmos não usuais para uma banda de rock: no primeiro disco temos um samba de breque, Seu Waldir, e nesse novo álbum temos um tango, O Poeta. Os outros três músicos que complementam a banda têm todos trabalhos autorais individuais, mas quando tocam com a gente fazem questão de dizer que são aves sangrias.     

Vocês fizeram parte de uma ampla tendência da música produzida no Nordeste na década de 1970, que unia referências do pop e do rock internacional – particularmente o psicodelismo, o prog e o glam – com sonoridades regionais e populares brasileiras. Quais eram as principais influências musicais da Ave Sangria? Vocês interagiam com outros artistas e grupos nacionais com trabalhos similares?

As principais influências nacionais são Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro. As internacionais são Beatles, Stones, Led Zeppelin e Jimi Hendrix. Mas tem de tudo, eu, por exemplo, estudei piano clássico (adoro música clássica) e também ouvi muito boleros, sambas, frevos, maracatus, caboclinhos etc. Pra gente, misturar gêneros sempre foi uma coisa natural. Não planejamos isso. Foi acontecendo espontaneamente. Temos um baião com harmonia de blues. E por aí vai. Interagimos muito com os outros grupos e músicos que existiam no Recife no início dos anos 1970: Robertinho do Recife, Nuvem 33, Flaviola e o Bando do Sol, Aristides Guimarães e o Laboratório de Sons Estranhos, Licá, Lailson, Lula Côrtes, Zé Ramalho e Marconi Notaro…

Cena do clipe “Vendavais”. Foto: Reprodução

A qualidade poética e inventiva das letras das canções também é uma marca da banda. Comente um pouco sobre esse aspecto, por favor.

Eu tenho formação de poeta. Já publiquei 10 livros de poemas. Li e leio muito. Sou influenciado por Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto e Cecília Meireles, aqui no Brasil. Lá fora minhas influências são o português Luís de Camões, o francês Arthur Rimbaud e o espanhol Federico García Lorca. Convivendo com esses gênios é natural que eu me sinta estimulado a ousar com a palavra. Geralmente escrevo num jorro e depois vou burilando o texto. E quase sempre saem a música e a letra juntos.

Como você avalia a importância da Ave Sangria na cena musical da época e também posteriormente tanto em Pernambuco, em particular, quanto no Nordeste, em geral?

Acho que nossa principal importância é que fazemos uma música necessária em tempos desnecessários. Primeiro na ditadura militar e agora nessa coisa miliciana que está aí. Servimos de antídoto contra a burrice, o culto à violência e o conservadorismo fanatizado.

Tanto na primeira encarnação quanto nesse renascimento, a Ave Sangria é cultuada especialmente por um público jovem. Por que você acha que isso acontece?

Os jovens se identificam com a gente porque pregamos a rebeldia, a ousadia, a irreverência, a iconoclastia, a liberdade e a alegria. Atitudes que movem os jovens de verdade.

A censura à música Seu Waldir foi decisiva para a dissolução da banda em 1974. Vivemos atualmente no Brasil um clima repressivo semelhante ao daquela época?
Vivemos numa ditadura disfarçada. Um clima de nazifascismo desavergonhado. Temos que estar alertas o tempo todo. Não dá pra facilitar com esse pessoal que está no poder.

A Ave Sangria está preparando algum trabalho novo?

Assim que o clima melhorar vamos reiniciar nossas turnês de divulgação do álbum Vendavais além de planejar um show acústico. E também já estamos pensando em gravar um novo clipe, desta vez com uma música do primeiro álbum. E um novo disco já começa a se desenhar em nossas mentes. Dessa vez com composições mais recentes.

Assista ao clipe de Vendavais:

Gostou desta reportagem? Garanta que outros assuntos importantes para o interesse público da nossa cidade sejam abordados: apoie-nos financeiramente!

O que nos permite produzir reportagens investigativas e de denúncia, cumprindo nosso papel de fiscalizar o poder, é a nossa independência editorial.

Essa independência só existe porque somos financiados majoritariamente por leitoras e leitores que nos apoiam financeiramente.

Quem nos apoia também recebe todo o nosso conteúdo exclusivo: a versão completa da Matinal News, de segunda a sexta, e as newsletters do Juremir Machado, às terças, do Roger Lerina, às quintas, e da revista Parêntese, aos sábados.

Apoie-nos! O investimento equivale ao valor de dois cafés por mês.
Se você já nos apoia, agradecemos por fazer parte da rede Matinal! e tenha acesso a todo o nosso conteúdo.

Compartilhe esta reportagem em suas redes sociais!
Share on whatsapp
Share on twitter
Share on facebook
Share on email
Se você já nos apoia, agradecemos por fazer parte da rede Matinal! e tenha acesso a todo o nosso conteúdo.

Compartilhe esta reportagem em suas redes sociais!
Share on whatsapp
Share on twitter
Share on facebook
Share on email

Gostou desta reportagem? Ela é possível graças a sua assinatura.

O dinheiro investido por nossos assinantes premium é o que garante que possamos fazer um jornalismo independente de qualidade e relevância para a sociedade e para a democracia. Você pode contribuir ainda mais com um apoio extra ou compartilhando este conteúdo nas suas redes sociais.
Share on whatsapp
Share on twitter
Share on facebook
Share on email

Se você já é assinante, obrigada por estar conosco no Grupo Matinal Jornalismo! Faça login e tenha acesso a todos os nossos conteúdos.

Compartilhe esta reportagem em suas redes sociais!

Share on whatsapp
Share on twitter
Share on facebook
Share on email
PUBLICIDADE

Esqueceu sua senha?