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Quando elas tocam

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Quando elas tocam As instrumentistas que participam do Unimúsica 2020. Montagem: Marcelo Freire/Divulgação

Ao chegar ao Rio de Janeiro, Maria Rosa Canellas (1941-2004), natural de Valença, no interior do estado, foi apadrinhada pelo jornalista Sérgio Porto (1923-1968), que cunhou seu nome artístico com a justificativa de que ela tocava “por uma cidade inteira”. Rosinha de Valença foi uma virtuose do violão, tornou-se um dos ícones da bossa nova, viajou o mundo, compôs, lançou nove álbuns solo e contribuiu com o trabalho de outros artistas, como Sérgio Mendes, Martinho da Vila, Sivuca e Maria Bethânia. Apesar dessa trajetória tão expressiva, seu nome permanece invisibilizado na história mais difundida da música brasileira. Por que a referência de seu colega de ofício Baden Powell nos alcança com maior força? E ainda: por que quando pensamos em mulheres na bossa nova a primeira imagem que nos vem à cabeça é a de uma Nara Leão cantora?

São questões complexas, com inúmeros atravessamentos, sobre as quais nos convida a pensar a temática do projeto Unimúsica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em 2020. Forrobodó: Quando Elas Tocam é um festival online inteiramente dedicado às mulheres instrumentistas, a ser realizado de 14 a 18 de setembro. Desde 2004, a iniciativa estabelece ciclos temáticos anuais que problematizam aspectos do universo da música popular.

“Este festival Forrobodó dá continuidade à linha curatorial do Unimúsica ao buscar se contrapor à ideia ainda corrente de que não há, ou há poucas, mulheres instrumentistas”, explica a coordenadora do projeto, Lígia Petrucci. “Mas aqui, como em outras séries anteriores, não nos focamos apenas em questões musicais, mas em questões políticas também.” 

Ao longo de cinco noites, o festival iluminará o trabalho de 25 mulheres que se dedicam a instrumentos como piano, fagote, clarinete, flauta, saxofone, harpa, violão, violino, viola, rabeca, sanfona, contrabaixo, guitarra e percussão. A curadoria, também realizada por mulheres, perseguiu a diversidade não só de instrumentações, mas das próprias produções, provocando um encontro de geografias, gerações e tradições musicais, sem perder de vista o compromisso com a representatividade negra e LGBTQI+. Na imagem abaixo, vemos o resultado de um processo que partiu da reunião de uma lista com mais de 100 artistas incríveis para gerar as combinações de cada espetáculo.

Papéis de gênero

Entre as instrumentistas convidadas do projeto Unimúsica, estão mulheres que integram orquestras e bandas de outros artistas, que lideram grupos, que compõem ou que cantam acompanhadas de seus próprios instrumentos. Dada essa variedade de experiências, as questões de gênero podem marcar suas trajetórias em maior ou menor grau. Para a harpista Cristina Braga, por exemplo, os ambientes musicais por onde circulou sempre foram de harmonia e respeito às diferenças. “Não senti isso muito na minha carreira, não sei se foi porque eu estava preocupada tentando acertar os pedais”, brinca, referindo-se à complexidade dos mecanismos de seu instrumento.

No entanto, um levantamento realizado em 2017 no Instituto de Artes da UFRGS ajuda a enxergar como a nossa cultura patriarcal impacta nos papéis e espaços historicamente ocupados pelas mulheres na música. A sistematização de dados feita pelo Grupo de Pesquisa em Estudos de Gênero, Corpo e Música, coordenado pela professora Isabel Nogueira, indica que as mulheres são minoria no curso de bacharelado em Música em quase todas as ênfases (música popular, cordas, sopros, piano, regência e composição), menos no canto lírico.

A realidade identificada em uma das principais instituições brasileiras de formação de profissionais da música é percebida na prática pelas instrumentistas convidadas do Unimúsica 2020. Para a pianista, cantora e educadora Simone Rasslan, há um entendimento de que é reservado aos homens o papel de pensar a música, criar arranjos e escrever partituras. Às mulheres, restaria o lugar da cantora apartada das decisões musicais, dentro de uma compreensão de que a voz é uma dádiva, algo que não precisa ser trabalhado. “Eu presenciei durante muito tempo esse tipo de preconceito no meio musical, e ele está presente ainda, de ambos os lados, não é só uma ação masculina em relação à mulher, mas também da mulher em relação à mulher”, afirma Rasslan, sublinhando o caráter estrutural desse contexto. 

Não se trata de uma situação específica do Rio Grande do Sul, onde Simone atua com maior frequência. No Rio de Janeiro, a pianista e cantora Maíra Freitas conta que se deparou com o machismo atuando como instrumentista e arranjadora. “Depois que eu virei cantora, as coisas mudaram um pouco”, revela, apontando para uma proximidade com as vivências da rabequeira e cantora Renata Rosa. Na convivência com seus mestres, no período de formação, Rosa entende que o fato de ser mulher nunca foi uma questão.

“Minha relação do canto com a rabeca está muito influenciada pelo imaginário da poesia cantada pelas trovadoras através dos tempos”, conta Rosa. E acrescenta: “É como se eu estivesse amplificando várias mulheres, várias histórias que vieram antes de mim”. No entanto, no âmbito da atuação como diretora musical de seu trabalho autoral, ela diz ter encontrado desafios, como a dificuldade de ser ouvida e a necessidade de justificar suas escolhas e direcionamentos – situações pelas quais um homem, em seu lugar, possivelmente não passaria. 

O caso da guitarrista Natália Carrera é simbólico desses papéis de gênero que se colocam no meio musical. Ela começou sua carreira antes de fazer a sua transição, e o fato de passar a se identificar publicamente como mulher transformou a maneira como se relaciona com seu instrumento, tradicionalmente tido como masculino. “Depois da minha transição, eu reinventei a minha relação com a guitarra, o que é ser guitarrista, o que é estar no palco, o que é ser uma figura feminina tocando guitarra.” Natália conta que passou a receber mensagens de pessoas que assistiam aos shows e ficavam felizes em ver uma mulher ocupando outro lugar, para além dos holofotes em torno da cantora.   

Representatividade e sororidade

“Quando eu reparei que as pessoas não iam me chamar pra tocar porque eu era mulher, eu resolvi chamar as pessoas pra tocar comigo, e produzi 97% daquilo que eu fiz até hoje”, lembra a flautista e pianista Léa Freire, que se dedica à música há 55 anos. Sua atuação abriu caminhos para outras mulheres, de modo que ela se tornou referência para a nova geração, incluindo a violinista Carol Panesi, também convidada do Unimúsica, que inclusive a homenageou com a composição No balanço da Léa em seu disco de estreia autoral, Primeiras Impressões.

A importância da representatividade fica bastante evidente na trajetória dessas instrumentistas. Ver outras mulheres tocando é um estímulo, um sinal de que aqueles espaços podem ser ocupados por elas, o que mais tarde se transforma em um compromisso em ser também referência para as futuras gerações. Tanto mais no caso daquelas que são atingidas tanto pelo machismo quanto pelo racismo estrutural.

“Por tradição, a gente tem o silenciamento da cultura negra, do que é produzido, do que é pensando”, observa Gabriela Vilanova, violista da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (OSPA). Ela aponta que a imagem das mulheres negras é associada a um papel servil, e não ao do pensamento e da produção de conhecimento. Por isso, para Gabriela, “ser uma mulher preta no Sul do Brasil fazendo música é algo muito revolucionário”. “É fazer pensar: por que os papéis são sempre os mesmos?”, questiona.

As convidadas do Unimúsica têm a percepção comum de que pequenos avanços aconteceram nos últimos anos. No mínimo, há um movimento importante de aproximação entre as mulheres – e a potência dessa união é unânime. “Muito pelo fato de as mulheres instrumentistas terem sido raras até então, sinto que quando elas se juntam existe uma sensação de irmandade, de apoio mútuo, que é muito legal”, testemunha a baterista Mariá Portugal.

La tendencia es clara, todo va por buen camino”, acena, positiva, a bandoneonista Ayelen Pais, lá da Argentina. Segundo ela, até poucos anos atrás, não havia mulheres nas orquestras típicas de tango. Para poder trabalhar, em algumas ocasiões, precisou vestir terno, gravata e enormes sapatos emprestados por um colega. Mas, se há 15 anos era possível contar nos dedos das mãos as mulheres que se dedicavam ao bandoneón, hoje Ayelen já não consegue enumerá-las. Além disso, ela mesma integra duas orquestras – e usando as próprias roupas. 

Unimúsica reinventado

Dentro do calendário universitário, o festival Forrobodó do Unimúsica está inserido na programação do Salão UFRGS, maior evento de compartilhamento de experiências da comunidade acadêmica. O tema deste ano é A Arte de Reinventar Vidas, e foi justamente à completa reinvenção que o tradicional projeto musical da Universidade precisou recorrer, depois de quase quatro décadas de existência, em função da pandemia de Covid-19. 

A ideia de uma série voltada ao trabalho de mulheres instrumentistas já estava sendo desenvolvida e precisou ser adaptada. Na impossibilidade de realizar shows com público no Salão de Atos da UFRGS, optou-se pela realização de um festival online. A mudança viabilizou a reunião de 25 projetos solo, algo inédito no Unimúsica, mas também demandou a criação de novos métodos de trabalho e processos de concepção dos espetáculos. “O principal desafio é o de transportar para a cena virtual, dentro das condições técnicas de que dispomos, a atmosfera, a ambiência do encontro entre artistas e audiência”, avalia a produtora cultural Lígia Petrucci

A solução encontrada é mista. Combina a transmissão multiplataforma ao vivo, com a presença de cinco instrumentistas por noite, e a exibição de performances solo pré-gravadas pelas convidadas especialmente para o projeto, atendendo às orientações de distanciamento social. A despeito do delay de som característico das videochamadas, que impede a prática musical coletiva instantânea, o festival também instigou-as a colaborar em um vídeo que vai reunir registros gravados separadamente. A cada noite, o público tem a oportunidade de ouvir a mesma obra em um arranjo diferente, construído a distância, por cinco musicistas que, em geral, nunca haviam tocado juntas.

A música escolhida para transitar pelos instrumentos dessas mulheres é uma composição da precursora dessa história, Rosinha de Valença, que recebe afetuosa e merecida homenagem nessa aglomeração virtual de instrumentistas. Em tempos tão propícios à transformação dos nossos modos de vida, o Forrobodó do projeto Unimúsica sugere um caminho para contar outras histórias da música brasileira.

***
Esta reportagem nasce de meu envolvimento na concepção do Unimúsica 2020, tendo a honra de atuar como curadora ao lado de Ana Fridman, Lígia Petrucci, Marta Schmitt e Nanni Rios. Foi um processo gratificante, que me fez pensar sobre a necessidade de falarmos mais sobre questões de gênero na música. Desde a pesquisa para compor conjuntamente uma lista de possíveis convidadas, chamou a atenção a quantidade de trabalhos maravilhosos – incluindo alguns que não conhecíamos, apesar de atuarmos há anos na área da música. Não cabe mais aceitarmos o senso comum de que há poucas instrumentistas. É preciso ouvi-las.

Programação Unimúsica 2020 – Festival Forrobodó
De 14 a 18 de setembro, às 20h
Confira os canais de transmissão, em breve, no site da Difusão Cultural da UFRGS.

14/9 – Alzira E, Josyara, Lívia Mattos, Nina Fola e Gabriela Machado
15/9 – Simone Soul, Lilian Nakahodo, Ana Karina Sebastião, Ange Bazzani e Maria Beraldo
16/9 – Cristina Braga, Léa Freire, Carol Panesi, Mariá Portugal e Gabriela Vilanova
17/9 – Lucinha Turnbull, Natália Carrera, Denise Fontoura, Clarice Assad e Bianca Gismonti
18/9 – Ayelen Pais, Renata Rosa, Simone Rasslan, Maíra Freitas e Joana Queiroz 

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