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Gasto municipal com cultura é o menor em 17 anos

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Gasto municipal com cultura é o menor em 17 anos Carnaval de Porto Alegre no Porto Seco. Brayan Martins/PMPA

Dados do Tribunal de Contas do Estado mostram que Secretaria Municipal de Cultura destinou valor ínfimo para difusão da arte nos últimos anos.

Na terça-feira, 3 de novembro, o prefeito Nelson Marchezan Júnior (PSDB) publicou em seu perfil de facebook imagens de um encontro com carnavalescos do grupo de acesso do Carnaval de Porto Alegre. Embora tenha acontecido no Paço Municipal, sede da administração da Capital, foi registrado em clima de campanha eleitoral, não só pelas fotos com sorrisos largos e olhares cúmplices entre o atual candidato à reeleição e os participantes do evento, mas pelo conteúdo: Marchezan anunciou para o ano que vem um projeto de parceria público privada (PPP) para o Porto Seco, um dos três únicos espaços culturais da periferia da cidade.

A proposta prevê a permuta de terrenos públicos no entorno do Porto Seco em troca de investimentos de empresas interessadas em ocupá-los. O dinheiro viabilizaria duas arquibancadas permanentes na passarela do samba porto-alegrense, além de infraestrutura pública, como posto para a Guarda Municipal, serviços de assistência social e uma clínica de Saúde da Família – agora ainda mais necessários na região, que está recebendo as 1,3 mil famílias que moravam na Vila Nazaré, atrás do aeroporto Salgado Filho, mas foram obrigadas a deixar a área para ceder espaço à expansão da pista de pousos.

A proposta é considerada um alento por carnavalescos da cidade, que viram o prefeito levar ao chão a verba pública destinada à manifestação popular nos últimos quatro anos, interrompendo desfiles e uma trajetória de ampliação gradual de recursos para a festa.

Dados do Tribunal de Contas do Estado mostram que o dinheiro público empregado no Carnaval entre 2004 e 2016 passou de R$ 7,3 milhões para R$ 10 milhões, em valores corrigidos. Um recurso que na gestão Marchezan caiu para R$ 125 mil no primeiro ano e foi a zero em 2020, pelo menos até agosto, que é o período disponível para consulta.

“Quando falamos em investimentos para o Carnaval, temos uma realidade até 2016 e outra de 2017 até os dias atuais. Antes havia aporte financeiro da prefeitura, que pagava cachês para escolas de samba, montagem de arquibancadas, sonorização, iluminação. Mas nesta gestão, o recurso foi zerado e não teve nenhuma substituição, nenhum aporte da iniciativa privada, para que escolas pudessem fazer seus desfiles”, lamenta o presidente da Imperadores do Samba, Érico Leoti.

Por essa razão, não houve Carnaval em 2018 (o de 2017 saiu porque já estava programado antes da posse do atual prefeito) e em 2019 e 2020 as escolas se organizaram para viabilizar a festa mesmo com limitações. “Para que não deixasse de existir”, complementa. 

Nos últimos meses, a União das Escolas de Samba de Porto Alegre e da Região Metropolitana (Uespa) entregou uma carta aos candidatos à prefeitura de Porto Alegre, pedindo que garantam investimento público para o Carnaval da cidade. “Somos 16 escolas de samba e damos trabalho para cerca de 500 pessoas durante boa parte do ano, nos preparativos do Carnaval. Nossa cadeia produtiva inclui lojas de tecido da região, costureiras, serralheiros e até os ambulantes que vendem churrasquinho e pastel no dia dos desfiles”, justifica Rodrigo Costa, presidente da entidade.

Apenas 4% do bolo vai para ações culturais

O caso do Carnaval é o mais evidente na redução de verbas públicas para a cultura, mas não é o único. O gasto geral nessa função feito pela prefeitura de Porto Alegre vem caindo desde 2014, com expressiva redução a partir do primeiro ano de gestão Marchezan. Isso apesar de o atual prefeito não ter reduzido o orçamento destinado para o segmento, que se manteve estável nos quatro anos de seu mandato, girando ao redor dos R$ 50 milhões ao ano – mas também abaixo do patamar médio mantido por seus antecessores, que dificilmente era menor que R$ 70 milhões por ano, em valores corrigidos.

É verdade que nos últimos 17 anos, nenhum prefeito aplicou a totalidade do recurso planejado para a cultura ao longo do ano. Mas com Marchezan, a distância entre o que foi orçado e o efetivamente pago se tornou cada vez maior. Outros prefeitos tiveram diferenças grandes entre o pretendido e o realizado – em alguns casos, até maiores em valores absolutos – mas todos executaram gastos superiores aos atuais. 

Ao mesmo tempo em que reduziu a verba geral para a cultura, o atual governo executou o orçamento de uma forma inusual. Enquanto nos 10 anos anteriores houve paridade de gastos entre administração geral (custos fixos para manter a infraestrutura funcionando) e a chamada “difusão cultural”, na qual entram recursos destinados a ações artísticas efetivamente (shows, espetáculos de teatro e o próprio Carnaval), de 2017 em diante quase toda a verba pública na área foi para pagar os boletos do mês: conta de luz, envio de correspondência, limpeza e a folha salarial.

Apenas 4% de todo o gasto foi direcionado para difusão cultural nos três primeiros anos de Marchezan – uma fatia do bolo menor do que a destinada à tecnologia da informação, por exemplo. A pior proporção anterior à atual gestão aconteceu em 2015, no mandato do ex-prefeito José Fortunati, quando 37,8% dos gastos foram destinados à difusão cultural. A despesa com ações culturais, que ficava sempre na faixa de R$ 20 milhões a R$ 30 milhões por ano, não chegou a R$ 1 milhão entre 2017 e 2019. Neste ano, subiu um pouquinho, rompendo a barreira do milhão, mesmo que a conta só chegue até agosto e haja uma pandemia que dificulta atividades de lazer.

“Está muito miserável a coisa. Além da retomada do Festival de Música da cidade, que foi muito importante, e das edições do Porto Alegre em Cena, a gente não tem nenhum investimento relevante na cultura nos últimos anos”, critica Letícia Fagundes, secretária geral do Conselho Municipal de Cultura de Porto Alegre.

Alabarse aponta recursos além do orçamento

Desde que iniciou seu mandato, o secretário municipal de Cultura, Luciano Alabarse, defende um modelo orçamentário aberto aos recursos privados e parcerias com outros órgãos públicos. A pasta inclui entre suas realizações, por exemplo, a construção da Estação Cidadania na Restinga, um projeto gerenciado pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social e Esporte que oferece para a comunidade biblioteca e uma sala de cineteatro. Outro exemplo foi a encenação de O Rei da Vela em Porto Alegre, em 2018, espetáculo criado na época da ditadura militar pelo teatro Oficina, de São Paulo, cuja apresentação na capital gaúcha foi financiada por patrocinadores privados e com verbas federais.

“Ocupei diversos cargos nas últimas seis gestões municipais [antes de ser secretário, Alabarse foi diretor do POA em Cena e também conduziu a pasta da Cultura em Canoas] e acompanhei de perto a compreensão de cada gestor sobre o tema. Há diferentes modos de se entender o investimento em cultura na prática: através do orçamento regular público, de parcerias privadas, leis de incentivo, convênios, editais. Agora como secretário, diante de realidades financeiras adversas, sempre tentei conseguir recursos para tocar projetos relevantes, com todas as fontes que pudessem colaborar para isso. Às vezes, a gente tem de fazer mágica e malabarismo pra tocar o barco. Isso não é de hoje”, defende Alabarse.

Por outro lado, a cruzada pela austeridade liderada pelo prefeito Marchezan conseguiu um feito inédito na Secretaria Municipal da Cultura. Pela primeira vez desde 2004, houve redução do gasto administrativo em relação ao que foi orçado originalmente. Como esse é o dinheiro que paga as despesas regulares – contas mensais, salários, contratos terceirizados – é um gasto previsível, e, portanto, sua execução é sempre muito próxima ao valor planejado no orçamento.

Mas desde 2017 houve não apenas redução desse valor em relação ao gasto no ano anterior, mas as despesas efetivamente pagas caíram muito também se comparadas à dotação estabelecida para essa rubrica anualmente, que teve inclusive um acréscimo entre 2018 e 2019.

Matinal pediu esclarecimentos para a prefeitura sobre esses dados, mas a assessoria de imprensa informou que toda a equipe da pasta, incluindo o próprio secretário Luciano Alabarse, estava envolvida com o pagamento dos auxílios emergenciais a artistas previstos na Lei Aldir Blanc e não poderiam responder aos questionamentos. 

Mais uma vez o Carnaval oferece uma explicação: na planilha de custos para a manutenção do Porto Seco que a Secretaria Municipal da Cultura mantém, há previsão de gastos de R$ 3 mil com iluminação. Mas, segundo as entidades carnavalescas, desde o início da gestão o local está sem luz nas áreas públicas. “E cada escola paga a conta do seu barracão”, garante Rodrigo Costa, da Uespa.

Carnavalescos querem rever concessão

Embora o projeto de uma PPP para melhorar a infraestrutura do Porto Seco esteja previsto para o ano que vem, desde 2018 a prefeitura não gerencia o local, entregue à administração das próprias escolas de samba através de um termo de permissão de uso firmado com a União das Escolas de Samba de Porto Alegre e Região Metropolitana.

Foi uma alternativa oferecida pela administração diante da negativa de financiar o Carnaval com recursos públicos. A ideia acabou sendo encampada com entusiasmo pelos carnavalescos, que viram na transferência de gestão a oportunidade de atrair eventos ao longo de todo o ano para o local. Mas não deu certo.

“O Porto Seco está abandonado, sem luz há quatro anos. A deterioração dos barracões é avançada, é uma situação muito crítica”, lamenta o presidente da Imperadores do Samba, Érico Leoti.

“A gente não tem condições de manter só com a renda das quadras, é muito caro”, complementa o presidente da Uespa, Rodrigo Costa.

O termo de permissão de uso tinha vigência de dois anos, prazo que já venceu. Enquanto a prefeitura diz que a renovação está sendo encaminhada, os carnavalescos querem aproveitar o momento para ampliar a discussão. “Queremos fazer uma discussão porque vemos que não foi bom para o Carnaval. Com o termo de uso, a prefeitura acabou assumido que o Porto Seco não é mais responsabilidade dela”, aponta Leoti.

Participação privada é realidade

Assim como o Porto Seco, outros 15 dos 27 espaços culturais públicos de Porto Alegre já são gerenciados com a participação da sociedade civil e da iniciativa privada ou têm planos nesse sentido. O maior contrato é o da Opinião Produtora, que gerencia o Auditório Araújo Vianna e o Teatro de Câmara Túlio Piva, fechado desde 2014 e que entrou no contrato como contrapartida para a concessão do Araújo.

Mas há outros menores e para os quais não foi preciso abrir concorrência pública – caso do próprio Porto Seco, da Casa do Fumproarte, e da Cia de Arte. Nos três casos, ou a administração é totalmente entregue aos interessados ou é compartilhada, como ocorre na sede do fundo de cultura, na avenida Venâncio Aires. O casarão histórico, anteriormente utilizado como depósito de móveis, foi restaurado com mão de obra de servidores públicos e dos integrantes do Foto Clube Porto-Alegrense, que agora ocupam a galeria de arte que fica na antiga garagem do imóvel.

Já o edifício da Cia de Arte, nos altos da Rua da Praia, teve sua administração terceirizada aos artistas pela prefeitura em 2004, depois que a administração comprou o prédio anteriormente de propriedade da Caixa. Segundo a página do Facebook do centro cultural, que faz campanha ostensiva para um candidato a vereador do PDT, “o Centro Cultural Cia de Arte tem uma proposta inédita no Brasil: é um prédio público totalmente gerido por artistas”.

Há editais em preparação para nove espaços públicos municipais (seis deles na Usina do Gasômetro); em dois casos a prefeitura voltou atrás (Atelier Livre Xico Stockinger e Pinacoteca Ruben Berta) e outros quatro foram pelo menos considerados como possíveis alvos de editais segundo uma planilha interna da prefeitura a que Matinal teve acesso: Teatro Renascença, Sala Álvaro Moreyra, Biblioteca Pública Josué Guimarães e Centro Municipal de Dança. Todos ficam no Centro Municipal de Cultura Lupicínio Rodrigues, junto com o Atelier Livre.

Segundo a pasta, depois que a primeira licitação precisou ser cancelada sob suspeita de fraude, o Centro Cultural Multimeios será alvo de novo edital, ainda sem previsão de lançamento. A anunciada criação do Conservatório de Música, no sistema de contratualização da prefeitura concedendo o local onde funciona o Estúdio Geraldo Flach, na Cidade Baixa, segue nos planos. A administração municipal também se mantém firme na ideia de repassar a uma instituição privada a gestão da Cinemateca Capitólio, depois que uma decisão judicial derrubou a liminar que suspendia o processo.

Metodologia

Os dados utilizados na reportagem foram extraídos da página de Dados Abertos do TCE-RS. Matinal optou por usar as informações do TCE-RS e não do Portal de Transparência da prefeitura porque a forma como o conjunto de dados do tribunal está organizado permite análises sobre a aplicação de recursos na função “Cultura” e demais subfunções, programas, projetos, unidades orçamentárias, entre outros – o que é impossível de fazer com as informações do site da prefeitura, que não estão detalhadas dessa forma.

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