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Hugo Pilger e Ney Fialkow celebram legado de Claudio Santoro

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Hugo Pilger e Ney Fialkow celebram legado de Claudio Santoro

“Estou nervoso tal como esperando para entrar no palco”, escreveu o pianista Ney Fialkow no chat de uma transmissão pelo YouTube, no último domingo à tardinha. Faltavam poucos minutos para o lançamento do álbum Claudio Santoro: A Obra Integral para Violoncelo e Piano, gravado em parceria com o violoncelista Hugo Pilger. O que ocorreria na companhia do público, em uma sala de concertos, devido à pandemia de Covid-19 acabou dando lugar à apresentação de um minidocumentário sobre os bastidores da gravação, com bate-papo virtual. O frio na barriga sentido pelo experiente e consagrado pianista, professor do Instituto de Artes da UFRGS, sugere a importância e o ineditismo do trabalho concebido pelo duo.

Ainda que Claudio Santoro (1919-1989) seja um dos protagonistas da história da música de concerto brasileira do século 20, grande parte de sua produção composicional ainda é pouco conhecida e executada. Isso começou a mudar no ano passado, nas comemorações do centenário de nascimento do compositor. Orquestras de todo o país prestaram homenagens, e a ópera Alma foi levada pela primeira vez ao palco, trinta anos depois da morte de seu autor.

Ao todo, são sete as obras de Santoro para violoncelo e piano, registradas por Hugo Pilger e Ney Fialkow: quatro sonatas e as peças Adágio, Introdução e Dança e Encantamento. Mais da metade delas nunca tinha sido gravada, sendo que a Sonata nº 4 só existia no manuscrito e precisou ser editada para viabilizar a execução. No disco, as obras aparecem em ordem cronológica, desde 1943 até 1982, acompanhando o trânsito do compositor por diferentes estéticas ao longo de sua vida.

Como aponta o texto de apresentação no encarte do disco, assinado pelos professores Cesar Buscacio e Virgínia Buarque, da Universidade Federal de Ouro Preto, o percurso de Claudio Santoro é marcado por uma “autonomia criativa” que lhe permitia incorporar vertentes musicais à sua maneira, e não se prender a elas, podendo mudar de ideia em busca de novas experimentações. Assim, por exemplo, depois de integrar o grupo Música Viva, liderado pelo alemão Hans-Joachim Koellreutter, que difundia novas técnicas composicionais no Brasil – como o dodecafonismo -, Santoro se afastou das vanguardas quando tomou contato, na Europa, com o realismo socialista, com viés nacionalista. Mais tarde, rompeu com as orientações do Partido Comunista, ao qual era filiado, retornou ao serialismo e ainda flertou com a música aleatória e a eletroacústica.

Os deslocamentos estéticos do compositor demandam dos intérpretes um trabalho cuidadoso de criação de diferentes atmosferas. “Santoro exige um mergulho muito intenso na obra, até que aquilo passe a fazer parte de ti”, explica Pilger. Com a responsabilidade de realizar os primeiros registros de parte das obras, o duo buscou a máxima fidelidade possível à partitura, com auxílio de Alessandro Santoro, filho do compositor.

Na visão de Pilger, o duo alcançou algo muito próximo do que foi escrito. O desejo dele é estimular que seus alunos e colegas também desenvolvam suas interpretações. “A gente quer que outras gravações sejam feitas, com outras ideias que possam contribuir para que esse repertório alcance a difusão que merece”, sugere o músico.

Confira a transmissão que os músicos realizaram em 28 de junho pelo YouTube:

Espírito de missão

Há anos Hugo Pilger e Ney Fialkow alimentavam a ideia de gravar um disco juntos. Desde 2006, os músicos gaúchos vinham se apresentando em diferentes países com o Trio Porto Alegre, que integram ao lado do violinista Cármelo de los Santos, porto-alegrense radicado nos Estados Unidos. Quando, em 2016, uma das filhas de Claudio Santoro propôs que Pilger gravasse a obra integral para violoncelo e piano, fez-se a oportunidade de realizar o antigo desejo.

“O filé mignon da prática musical é justamente fazer música de câmara com quem a gente gosta e admira”, define o pianista carnívoro. A afinidade e a admiração mútua contribuíram para o resultado primoroso alcançado na interpretação de um repertório complexo e novo para o duo. O processo funcionou como um laboratório, com troca de ideias, negociações, decisões conjuntas e muita escuta. Tudo isso com o desafio da distância – enquanto Fialkow mora em Porto Alegre, Pilger vive no Rio de Janeiro, onde atua como professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e integra a Orquestra Petrobrás Sinfônica.

A maior parte dos encontros se deu na capital fluminense, com frequência suficiente para que as reservas de erva mate, nata e keschmier do gaúcho desgarrado estivessem sempre abastecidas. As gravações foram feitas em dois períodos, em outubro de 2019 e fevereiro de 2020. Nem os temporais que dificultaram os pousos no Rio de Janeiro, nem os desvios de rota necessários para a chegada ao estúdio em meio ao pré-Carnaval carioca impediram que o CD fosse finalizado, com sucesso, pouco antes da chegada do novo coronavírus.

Os dois concordam que um espírito de missão fez com que nenhum obstáculo fosse suficiente para barrar o projeto. Como professores em universidades públicas, entendem que têm o papel de difundir a música brasileira para além dos muros da academia. Na avaliação de Fialkow, “é uma espécie de prestação de contas do que o artista docente faz”.

Pilger tem mergulhado na música dos nossos compositores nos últimos anos. Primeiro foi Heitor Villa-Lobos, depois Ernani Aguiar, Ernst Mahle e agora Claudio Santoro. “Levantar a bandeira da nossa música é uma espécie de chamado. E nós ainda temos muita coisa para resgatar no Brasil”, defende o músico. O duo já planeja o próximo disco, mas o repertório ainda é mantido em segredo. Enquanto isso, o CD Claudio Santoro: A Obra Integral para Violoncelo e Piano está à venda na loja Clássicos da Revista Concerto e disponível para escuta nas plataformas de streaming.

Santoro no forno

Responsável pelo acervo do pai, Alessandro Santoro informa que muitos projetos iniciados no ano passado ainda estão em andamento e devem ser lançados em breve. O mais vultoso, encontra-se em estágio avançado – a Orquestra Filarmônica de Goiás gravou, sob regência de Neil Thomson, as 14 sinfonias de Claudio Santoro e outras obras orquestrais, muitas das quais inéditas. O material vai sair pelo selo Naxos, dentro da série Brasil em Concerto. O lançamento do primeiro CD já deveria ter ocorrido, mas atrasou em função da pandemia.

O Selo Sesc tem pelo menos três projetos no forno. Conforme divulgação nas redes sociais do barítono Paulo Szot, o álbum duplo Jardim Noturno – Canções e Obras para Piano de Claudio Santoro, com o pianista Nahim Marun, sairá em agosto. Há ainda em vista um CD da Orquestra Jovem do Estado de São Paulo, incluindo a primeira gravação da Missa a Seis Vozes, e outros dois reunindo o próprio Alessandro Santoro e o violinista Emmanuele Baldini, spalla da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp), com a integral das obras para violino e piano.

Além disso, os solistas da Osesp gravaram as Fantasias Sul América, uma série de peças solo para praticamente todos os instrumentos de orquestra. Em um futuro próximo, ao que tudo indica, estaremos mais perto de honrar o enorme legado deixado por Claudio Santoro para a música de concerto brasileira.

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