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Livrarias de rua apostam no digital para sobreviver

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Livrarias de rua apostam no digital para sobreviver

A crise desencadeada pela Covid-19 afeta diversos setores do meio cultural – e no mercado editorial não poderia ser diferente. Um exemplo emblemático é revelado pela lista de mais vendidos da revista Veja, considerada um termômetro do segmento: ao longo do mês de abril, pela primeira vez na história do periódico, a venda em livrarias físicas cedeu praticamente todo seu espaço ao comércio online de livros.

Um estudo da empresa de tecnologia Yandeh/Bookinfo encomendado pela Veja mostra que houve queda de aproximadamente 92% no faturamento de 250 pontos de venda de livros entre os dias 23 e 29 de março, na comparação com a semana que antecedeu o isolamento social no Brasil. Já o Painel do Varejo de Livros no Brasil, realizado pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) e pela empresa de pesquisas Nielsen Bookscan, apresenta uma redução de 40% nas vendas dos primeiros dias de isolamento, em relação ao mesmo período no ano anterior.

Os efeitos do coronavírus somam-se às dificuldades que o mercado editorial vive há anos em todo o Brasil – entre 2013 e 2018, segundo a Câmara Brasileira do Livro e o SNEL, houve queda de 26,7% na quantidade de exemplares vendidos no país. Diante desse cenário, pequenas livrarias de Porto Alegre apostam na curadoria de títulos, na tecnologia e na negociação de prazos com fornecedores como forma de sobrevivência, enquanto órgãos públicos e instituições de fomento – como o Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul (BRDE) – vêm tomando medidas para estimular o setor.

Renovação digital e clube de assinatura de livros

Proprietária da Livraria Baleia, com sede na rua Fernando Machado, no Centro de Porto Alegre, Nanni Rios conta que se viu obrigada a repensar o modelo de negócio do estabelecimento no primeiro dia de portas fechadas ao público. “Comecei a desenhar um site para expor o acervo e um clube de assinatura de livros – uma ideia que já estava na minha cabeça desde que abri a Baleia, há seis anos, mas que nunca ganhou prioridade por vários motivos”, conta a livreira.

Sem investimento financeiro, Nanni colocou o novo site no ar na última sexta-feira (17/4), aproveitando seus conhecimentos de comunicação digital e a colaboração da diretora de fotografia Livia Pasqual e da designer Ziza Pasqual para criar a nova identidade visual da livraria. A livreira lançou uma loja virtual e cinco modalidades de assinatura: ficção, não-ficção, poesia, feminismos e livro do mês. Mediante um pagamento mensal ou semestral, os assinantes recebem um título por mês em suas casas, além de descontos e recomendações de outras publicações.

A guinada digital da livraria também ganhou forma em lives diárias com escritores como Adelaide Ivánova, Angélica Freitas, Jeferson Tenório e Winnie Bueno e outros profissionais do mercado editorial. “Está sendo uma experiência fantástica de encontros e debate de ideias, além de manter a imagem da Baleia como um espaço de encontros e conversas sobre literatura”, conta.

Embora tenha encontrado alternativas, Nanni considera “brutal” os efeitos da pandemia. “Uma livraria de rua como a Baleia não se mantém somente com a venda de livros do dia a dia. Nossa principal receita vem com a movimentação dos cursos e eventos: lançamentos, encontros como o Leia Mulheres POA e o Somos+Literatura, bate-papos etc.”, explica.

A equipe da Baleia, formada por Nanni e duas funcionárias, foi mantida, com trabalho remoto e revezamento nas idas à loja, sem redução de salários. “Nossas demandas de trabalho não só se mantiveram nas áreas administrativa e financeira como aumentaram nas áreas de atendimento e canais de venda”, conta a livreira. No contato com as editoras para tratar de pagamentos, Nanni tem notado flexibilidade na negociação de prazos e valores e destaca as ações de apoio a pequenas livrarias por editoras como Arte & Letra, Elefante, Todavia e Companhia das Letras.

“Quando você olha pro lado, seus colegas estão tentando sobreviver, assim como você”

Um dos proprietários da Livraria Taverna, André Günther conta que os contatos por telefone, WhatsApp e redes sociais se intensificaram nas últimas semanas. “Enviamos áudios recomendando leituras, vídeos mostrando detalhes de determinadas edições… Quase como se trouxéssemos as pessoas para dentro da livraria”, conta o livreiro.

A atuação digital da Taverna antecede a abertura da loja física na rua Fernando Machado em 2016. “São mais de cinco anos operando como e-commerce, e essa experiência está sendo extremamente importante neste momento. Em tempos de quarentena, nossa loja virtual tornou-se a principal fonte de receita”, conta Günther.

A Taverna tem recebido pedidos inclusive de fora do Estado e faz envios dos livros pelo correio ou por telentrega – aos residentes de Porto Alegre. Segundo o livreiro, graças a esses esforços, as vendas se mantiveram estáveis nas primeiras semanas da pandemia no país.

Da mesma forma que a Baleia, a Taverna sente a perda do faturamento gerado por cursos, saraus e lançamentos. Mesmo assim, foi possível manter o pagamento dos funcionários, que agora trabalham de casa. O atendimento online e o envio dos pedidos têm sido feitos pelos proprietários, que seguem indo ao estabelecimento para empacotar e enviar os livros aos clientes. Para manter o espaço físico, a livraria contou recentemente com o apoio de uma vizinha que decidiu pagar uma conta de aluguel do endereço.

Diante do drama generalizado provocado pelo vírus, Günther conta que o contato com editoras, parceiros e fornecedores varia entre posturas compreensivas e inflexíveis: “Em tempos de pandemia, quando você olha pro lado, seus colegas estão tentando sobreviver, assim como você. É uma bomba que passa de mão em mão. Não sabemos quando vai estourar, e nem com quem”.

A Taverna deve lançar em maio uma plataforma de cursos online oferecidos por escritores parceiros. “Também estão previstos conteúdos em vídeo para redes sociais e YouTube, como resenhas, listas de livros e sugestões de leitura”, conta o livreiro.

Aposta em novos hábitos durante e após a pandemia

Prestes a completar 25 anos nesta sexta (24/4), a livraria Bamboletras, tradicional espaço do Centro Comercial Olaria, na Cidade Baixa, também se voltou aos pedidos feitos por canais digitais e telefone, com telentrega e envios de livros pelo correio. “Nos primeiros dias, faturamos apenas uns 15% do habitual. Então, começamos a fazer modestas campanhas nas redes sociais que deram resultados. Hoje, faturamos 60% do normal, o que é ainda muito impactante”, conta Milton Ribeiro, proprietário da livraria.

Atualmente Ribeiro e os cinco funcionários da Bamboletras trabalham de casa. A equipe da livraria tem discutido formas de se adaptar ao contexto atual, analisando a possibilidade de gravar vídeos sobre livros e autores e explorar mais as redes sociais para fortalecer o contato com os clientes e manter o faturamento do espaço. “Sou um cara teimoso (muito) e que gosta não somente dos livros, mas também das pessoas. Então, quero tentar ultrapassar a crise sem demitir ninguém. A Bamboletras sustenta cinco famílias”, conta o livreiro.

Assim como outros estabelecimentos, Ribeiro tem contado com flexibilizações de prazos e parcelamentos junto às editoras. “Fazemos parte de uma cadeia produtiva que conta com editores para publicar os livros, distribuidores para enviá-los e as bikes e o serviço postal para pegar os pacotes e levá-los aos clientes. Até agora, esse frágil ecossistema está se mantendo”, explica.

O retorno dos clientes da livraria tem sido positivo. “Muita gente está achando confortável receber os livros da Bamboletras imediatamente em casa. Também procuram novidades nossas no Facebook e no Instagram. Isso cria hábito. Assim como muitas pessoas estão redescobrindo o prazer de fazer coisas em casa, acho que os hábitos mudarão no período pós-pandemia”, reflete Ribeiro.

Despesas fixas preocupam livreiros

Marina Leal, uma das proprietárias da livraria Padula, também situada na rua Fernando Machado, considera a situação atual preocupante. Além da divulgação online e da telentrega, seguindo a tendência de outros estabelecimentos, a equipe da livraria – formada por dois sócios e um funcionário temporário – se esforça para cortar gastos, desocupando um depósito que tem sido oneroso diante das perdas de receita provocadas pelo isolamento social.

Coproprietária da Cirkula, localizada na avenida Osvaldo Aranha, Luciana Hoppe cita aluguel, luz e folha de pagamento como as principais dificuldades estruturais enfrentadas no momento. “Estamos tentando conseguir as linhas de crédito anunciadas pelo governo, mas que ainda não chegaram aos bancos”, conta a livreira.

No período de isolamento, a Cirkula direciona esforços para a atuação como editora. “Estamos intensificando o trabalho nesta área a fim de publicar obras que serão lançadas após a quarentena, quando for seguro para todos”, conta Hoppe. Para enfrentar a crise, a livraria também incrementou a presença digital, oferecendo o acervo da loja física no site, ampliando a presença nas redes sociais e disponibilizando conteúdos no canal de YouTube Cirkula TV.

A situação dos sebos não é muito diferente em relação às dificuldades com despesas recorrentes. “Negociei o valor do aluguel para este momento de exceção”, conta Mauro Hauser, proprietário da Gradiva Livraria, situada na avenida Protásio Alves, que tem os livros usados como foco do seu negócio. Segundo ele, as vendas caíram de modo geral – tanto nos contatos por telefone quanto na venda online. Hauser conta que ainda não consegue enxergar o futuro do sebo a médio prazo: “Ainda parece muito difícil prever como as coisas vão se desenrolar”.

Feira do Livro Virtual e crédito emergencial do BRDE

Embora a 66ª Feira do Livro de Porto Alegre siga prevista para novembro deste ano, o presidente da Câmara Rio-Grandense do Livro (CRL), Isatir Bottin Filho, conta que a entidade estuda criar “uma plataforma digital múltipla” para a edição de 2020. “Pensamos em algo similar a uma Feira do Livro Virtual, com experiências novas e uma programação bem dinâmica. Nosso objetivo é fortalecer o mercado local, envolvendo nossos associados”, conta o presidente da entidade.

Bottin explica que o planejamento está em fase inicial e deve ser financiado por meio de recursos obtidos via Lei de Incentivo à Cultura – conforme a Instrução Normativa 03, voltada a projetos digitais, como noticiamos aqui. Ele ressalta que, por ser uma entidade sem fins lucrativos, a CRL não dispõe de recursos para iniciativas de estímulo ao setor.

Uma alternativa em termos de investimento apontada pela diretora do Instituto Estadual do Livro, Patrícia Langlois, é o crédito emergencial oferecido pelo BRDE, com apoio da Secretaria de Estado da Cultura, voltada a empreendedores da economia criativa e condicionada à análise de crédito.

O valor máximo por operação varia de R$ 50 mil (microcrédito) a R$ 200 mil (micro e pequenas empresas) e R$ 1,5 milhão (para as demais empresas). O prazo de pagamento é de 60 meses, já incluída a carência, que pode variar de seis a 24 meses.

Apoio a pequenos negócios é a grande aposta

Diante das incertezas da pandemia, a tendência de apoio dos consumidores a negócios locais é a grande aposta dos livreiros. Milton Ribeiro, da Bamboletras, destaca o caráter comunitário das livrarias de rua: “A comunidade de leitores e livros é a comunidade que precisávamos antes, é a comunidade que precisamos agora nos tempos difíceis e é a comunidade com quem queremos estar quando tudo isso acabar”.

“Eu vejo um movimento dos nossos clientes e da comunidade como um todo, preocupada com o comércio local e em salvar os pequenos negócios”, observa Luciana Hoppe, da Cirkula. “Acredito que os clientes que gostam de uma livraria que nem a nossa ou de outras livrarias bacanas que existem aqui em Porto Alegre devam cuidar do seu livreiro”, defende.

Nanni Rios, da Baleia, vai na mesma linha: “Se não fosse a figura de livreiras e livreiros com a curadoria de títulos, seríamos só mais um site de venda de livros e competiríamos por preço, apenas. E perderíamos para a Amazon, invariavelmente”. A livreira completa: “A dedicação de uma livraria de rua à causa do livro é capaz de formar um público leitor muito qualificado, que é quem está com a gente neste momento de crise”.



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