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O rastro colaborativo de Luciane Cardassi

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O rastro colaborativo de Luciane Cardassi Luciane Cardassi. Foto: Lia Sfoggia

Going North, novo álbum de Luciane Cardassi, é resultado de um projeto homônimo desenvolvido pela pianista brasileira radicada no Canadá ao longo da última década. “Foi um movimento não só de mudança geográfica, mas também de crescimento e de transformação nas relações com compositores e compositoras”, reflete. Para aqueles que se dispuserem a embarcar em sua escuta (se possível, com bons fones de ouvido), o disco convida a um passeio por sonoridades inusitadas, produzidas na interação do piano com meios eletrônicos e por diversas possibilidades de colaboração entre a intérprete e outros artistas. 

Apesar de apontar para o norte, o trabalho é dedicado ao músico e professor porto-alegrense Fernando Mattos (1963-2018), cuja morte precoce e trágica, em um acidente de carro, completa dois anos nesta semana. Na época em que Luciane viveu em Porto Alegre, nos anos 1990, os dois se tornaram muito amigos. O CD de estreia da pianista, vencedor do Prêmio Açorianos de Música na categoria Melhor Disco Erudito de 1998, levou o nome de uma obra escrita por Fernando, Prelúdios em Porto Alegre. Como sugere o título, foi na capital gaúcha que Luciane deu os primeiros passos na arte da colaboração intérprete/compositor, que se tornaria central em sua trajetória profissional. E uma de suas primeiras experiências desse tipo foi com o próprio Fernando.

O disco Going North promove uma colaboração póstuma entre Luciane Cardassi e Fernando Mattos. A última faixa, The Boat Sings, é uma obra de 2012 originalmente escrita por ele para piano solo. O nome faz alusão a uma conversa entre os dois, em que a pianista mencionou uma expressão utilizada por remadores, que, quando estão em plena sincronia, dizem que o barco canta.

No novo trabalho de Luciane, a peça aparece em uma versão que une a parte do piano à gravação de uma improvisação do compositor ao violão e nos permite, com auxílio da tecnologia, ouvir os dois amigos como se estivessem tocando juntos. Ao lembrar-se da sessão de produção da faixa em estúdio, com a engenheira canadense Amandine Pras, Luciane conta, emocionada, que houve momentos de “sincronicidades inexplicáveis” entre as duas performances tão distantes no tempo. “Eu fico imaginando como ele se sentiria sabendo dessa nova criação, e eu acho que ele se divertiria com essa possibilidade de interação dele tocando com essa peça para piano. Conhecendo o meu amigo, eu acho que ele aprovaria.”

No canal de Fernando Mattos no YouTube, é possível assistir a duas versões em vídeo produzidas pelo compositor, tendo como base gravação de The Boat Sings, para piano solo, executada por Luciane Cardassi.

Conexão na Bahia

Entre os que tiveram oportunidade de conhecer Fernando Mattos, será consenso a memória de uma pessoa de amplo conhecimento, muito acessível, com ideais democráticos e espírito colaborativo. Por isso a homenagem em Going North ganha ainda mais sentido quando Luciane Cardassi revela que sua atuação na música de concerto contemporânea é norteada pela exploração de formas de criação menos hierárquicas e mais horizontais. Para ela, a reflexão sobre processos colaborativos no fazer musical não está descolada de uma compreensão sobre o seu papel na sociedade. 

Esse entendimento foi aprofundado nos anos em que a instrumentista atuou como professora visitante na Universidade Federal da Bahia (UFBA), entre 2018 e 2020. Nesse período, ao lado do professor Guilherme Bertissolo, ela manteve o Ateliê de Composição e Performance Contemporânea. As experiências ali desenvolvidas resultaram em três artigos recentemente publicados, em coautoria com seus colaboradores, nos quais reflete sobre instâncias de decisão compartilhada, criação interartística e o ensino da colaboração entre intérpretes e compositores. Os documentos estão acessíveis no site da pianista

Duas obras registradas em Going North surgiram dessas vivências de Luciane na Bahia. Berimbau é fruto de suas trocas com o compositor Alexandre Espinheira, também professor da UFBA. A peça transporta o instrumento afro-brasileiro para a sala de concerto e encara o piano como um super-berimbau, levando em conta as estruturas de cordas e caixa de ressonância que ambos possuem. 

Converse, por sua vez, foi uma experiência de colaboração que envolveu Luciane ao piano, Guilherme Bertissolo no processamento de eletrônica e vídeo em tempo real e a bailarina Lia Sfoggia. Os três assinam juntos a composição, que teve como ponto de partida o conceito de “estado de prontidão”, próprio da capoeira.   

Luciane Cardassi. Foto: Lia Sfoggia

Rumo ao norte

Natural de Araçatuba, Luciane Cardassi concluiu seu bacharelado em Música na Universidade de São Paulo, depois veio a Porto Alegre cursar o mestrado no Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Em seguida, iniciou seu percurso para o norte, com uma parada na Universidade da Califórnia, em San Diego, nos Estados Unidos, onde fez doutorado, antes de se estabelecer em Banff, na região das Montanhas Rochosas Canadenses. O disco Going North registra oito obras de compositores com quem a intérprete cruzou, presencial ou virtualmente, durante esse trajeto. “Cada colaboração é um universo diferente”, diz Luciane. 

Ela nunca chegou a conhecer pessoalmente Jorge Villavicencio Grossmann, peruano radicado nos Estados Unidos que viveu um período no Brasil e é o autor de Dois Aforismos com Interlúdio, segunda faixa do álbum. Toda a comunicação entre eles foi mediada pela internet. Diferentemente, com a canadense Emilie LeBel, Luciane colaborou em inúmeras oportunidades, elaborando um conjunto de obras, entre elas Wonder, registrada nesse disco. Ela integra o ciclo faith, work, leisure & sleep, em diálogo com a poesia de Sue Sinclair

Ao lado de outras duas compositoras canadenses, Luciane mergulhou em um processo exploratório de seu instrumento. Estudo de um piano, de Chantale Laplante, por exemplo, não se trata de um estudo técnico, como tantos compositores da tradição da música de concerto escreveram. A peça propõe a investigação dos sons possíveis de serem produzidos no instrumento, alguns mais “selvagens”, outros já “domesticados”, como define Laplante. O registro dessas descobertas é combinado à performance em um piano preparado – como é chamado quando são dispostos objetos nas cordas e martelos do instrumento, alterando sua sonoridade convencional.

Outro universo é experimentado por Luciane em colaboração com Terri Hron em Ahoj Ahoj, na busca por sons que remetem ao antigo K7. Isso porque a obra recupera registros, feitos nesse padrão de fita magnética, da comunicação que os pais da compositora mantinham com os parentes da Tchecoslováquia durante a Guerra Fria. “Quando a gente escuta as vozes de vocês, tão próximos, a gente imagina que vocês estão aqui no quarto ao lado”, diz, em inglês, a avó tcheca de Terri Hron, em um momento da música. Ao ouvi-la em 2020, é difícil não pensar nas pessoas que se fazem próximas por meio de mensagens de voz trocadas em aplicativos de celular durante os meses de distanciamento social imposto pela pandemia. Em um momento de tantas vidas perdidas, para Luciane Cardassi, Ahoj Ahoj, que abre o disco, “traz essa chamada para uma reflexão sobre o que é importante para a gente”. 

Going North sai pela Redshift Records, com apoio do Canada Council for the Arts

Capa de Going North. Foto: Redshift Records
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