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O trono do Rei do Baião continua vago

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O trono do Rei do Baião continua vago

É difícil, quiçá impossível, dimensionar o tamanho da influência e da estatura para a música de Luiz Gonzaga, o Rei do Baião – também conhecido como “Lua” -, não só para o Nordeste, mas para o Brasil. Nascido em Exu (PE) em 13 de dezembro de 1912 e falecido em 2 de agosto de 1989, Gonzaga – guardadas as diferenças – representou para o Brasil o que Elvis Presley significou para o mercado e para cultura popular norte-americana.

Luiz Gonzaga vivenciou um sucesso torrencial. Para se ter ideia, as prensas da antiga gravadora RCA, atual Sony/BMG, chegaram a trabalhar quase só para dar conta de seus discos, entre o final dos anos 1940 e início dos 1950. Enquanto Presley foi o “cavalo de Troia” da negritude num país racista, Gonzaga colocou o Nordeste, com sua cultura refinada e seus costumes peculiares, no mapa da chamada MPB. Era um momento de urbanização do Sudeste, em que nordestino era encarado como “peão de obra”, “cabeça chata”, “ser inferior”. O Rei do Baião desvelou a diversificada cultura desse povo, então encarado de forma pejorativa.

Curiosamente, traz o jornalista e escritor Daniel Feix em sua biografia Teixeirinha – Coração do Brasil (Diadorim), que reconstrói a trajetória do ídolo popular gaúcho, Gonzaga, entre outras, bebeu na fonte do lendário acordeonista e compositor rio-grandense Pedro Raymundo, um dos precursores do gauchismo, para formar seu estilo. Reza que após ter visto o artista gaudério em ação, devidamente pilchado, o jovem Luiz teria dito: “Eu quero ser o Pedro Raymundo do Norte!”. “Teixeirinha é de uma geração seguinte à do Pedro Raymundo e por óbvio trouxe essa influência, aprofundou o gauchismo dele e o levou para outros locais. Dá pra dizer que tanto o Gonzagão quanto o Teixeirinha, talvez os dos maiores fenômenos regionalistas do Brasil, tenham bebido nessa mesma fonte”, especula Feix.

A jornalista francesa Dominique Dreyfus, que dirigiu a edição francesa da revista Rolling Stone, exímia admiradora da obra de Luiz Gonzaga, também é autora do livro Vida de Viajante: A Saga de Luiz Gonzaga (Editora 34), que conta em pormenores a carreira do Velho Lua. A obra divide sua trajetória em dois períodos fundamentais: o primeira, dos anos 1940 até 1958, quando chegou a bossa nova – que deixou a sua música em segundo plano -, e a segunda, do final do anos 1960, com a aparição dos tropicalistas, que o resgataram, até sua morte em 1989. “Ele sofreu uma fase de esquecimento e de descriminação, mas qual artista com tal longevidade não sofreu algo igual?”, argumenta a pesquisadora.

Na opinião de Dominique, Luiz Gonzaga voltou para as luzes da ribalta graças ao apoio da turma da tropicália, e esse retorno foi prestigioso e prestigiado. “Para se fazer uma tal carreira é necessário ter publico e, portanto, ser amado. Se Gonzaga durou tanto e com tal sucesso é porque, afinal, ele foi amado”, pontifica. Leia mais nesta entrevista concedida com exclusividade pela autora:

Conte um pouco sobre a sua relação com o Brasil, com a música brasileira e, especialmente, com a obra de Luiz Gonzaga.

Minha relação com o Brasil começou em julho de 1948 quando, ainda bebê, cheguei no Recife com meus pais. Na época Luiz Gonzaga estava estourando, e o rádio tocava suas músicas o dia inteiro. Nós morávamos em Garanhuns, onde havia, como era costume nas pequenas cidades, alto-falantes pelas ruas que divulgavam os programas da única emissora local. Se bem que, queira ou não queira, a gente só ouvia Luiz Gonzaga o tempo todo mesmo. Eu me encantei logo de cara com a música dele.

Vida do Viajante, de sua autoria, é considerada a biografia mais completa sobre Luiz Gonzaga. Ela também foi muito lida na França e em outros países. Mas a obra musical também consegue ultrapassar as fronteiras do Brasil? E ainda: aqui no Brasil, ao seu ver, ele possui o devido reconhecimento?

Infelizmente, a fama de Luiz Gonzaga não chegou a ultrapassar as fronteiras do Brasil, mas também ele não fez nada para que isso viesse a acontecer. De forma que realmente ele não é nada conhecido fora do Brasil. Hoje em dia, o forró está começando a fazer sucesso aqui na França, mas o que interessa mesmo para o público não é bem a música e, sim, a dança – e quem se beneficia desse interesse são as bandas contemporâneas. Pelo que sei, meu livro nunca interessou a nenhum editor francês e tampouco de outros países. Isso se deve ao desconhecimento quanto a sua pessoa.

Inegavelmente, o Velho Lua teve uma belíssima carreira – em dois tempos: dos anos 1940 até 1958 quando, chega a bossa nova; e do final do anos 1960, com a chegada da geração tropicalista, até sua morte em 1989. Portanto, ele sofreu – mas qual artista com tal longevidade não sofreu igual? – uma fase de esquecimento, de discriminação, mas voltou às luzes da ribalta graças aos meninos da tropicália, e essa volta, pode-se afirmar, foi prestigiosa e prestigiada. Para se fazer uma tal carreira é necessário ter público e, portanto, ser amado. Se Gonzaga durou tanto e com tal sucesso é que ele foi amado. Mas com isso vem a pergunta: tendo sido ele tão amado, como se explica o fato de que nenhum brasileiro tenha se mexido para escrever uma biografia de Luiz Gonzaga? Essa tarefa, no final das contas, ficou para uma francesa residente em Paris.

Você o conheceu em sua ida a Paris, nos anos 1980. Como foi essa experiência?

Em 1981, Nazareth [produtora e amiga de Gonzaga] teve a ideia maravilhosa e corajosa de produzir um show de Luiz Gonzaga em Paris. Ele encheu – de brasileiros e franceses amigos do Brasil – o Bobino, uma bela sala mítica da capital francesa, e a coisa ficou por isso mesmo. Mas, para mim, a oportunidade valeu demais para que eu pudesse conhecer pessoalmente meu ídolo. Havia uma revista chamada Acordéon, e eu propus ao editor uma entrevista de Luiz Gonzaga. Ele nem sabia quem era, mas eu expliquei e ele topou. O Gonzaga estava hospedado no apartamento da Nazareth, que eu conhecia e, no final das contas, foi bem simples chegar até o mítico sanfoneiro que, na ocasião, me deu uma bela entrevista. Depois disso ele voltou a se apresentar em Paris uma segunda vez, em 1985, e foi assistindo a esse show, na Villette, que me veio a ideia de biografá-lo.

Com o compositor Nelson Valença, em 1973, Gonzaga gravou até aquilo que alguns chamaram de “forrock”, com a música o Fole Roncou. Que aventura foi essa?

Acho que essa aventura no “mundo do rock” é totalmente anedótica. A área do Gonzaga era a música nordestina e ele nunca pretendeu explorar outros gêneros, principalmente gêneros tão alheios à sua cultura e sua geração. Mas o Gonzaga tinha um certo humor, gostava de piadas. Acho que o lance do “forrock” – que de rock só tem o nome, pois musicalmente não passa de um genuíno forró sem a mínima pitada de rock – era uma forma de irrisão em relação aos roqueiros e a si próprio, à sua velhice…

Quanto ao episódio, nos anos 1960, de que os Beatles iriam gravar Asa Branca, disseminado pela imprensa brasileira pelo Carlos Imperial…

Francamente, nunca encontrei nenhuma referência a tal projeto na historia dos Beatles. Quando escrevi o livro, eu me informei sobre essa história, pesquisei, entrevistei especialistas dos Beatles e ninguém sabia nada disso. Acho que os Beatles ignoravam tudo do Nordeste, do forró, do Luiz Gonzaga e da Asa Branca! Imagino que foi uma brincadeira do Carlos Imperial [compositor, empresário e também conhecido como o “Rei da Pilantragem”], que ganhou uma fama eterna com esse boato.

Como entender Luiz Gonzaga nesse contexto tecnológico no qual vivemos?

Quanto mais tecnologia, mais necessidade de artesanato. A contrapartida da tecnologia hipersofisticada que vem ocupando todas as áreas das nossas vidas é a tendência ao saudosismo, um retorno às tradições. Sem que isso seja obrigatoriamente um processo conservador e reacionário. É mais uma necessidade de natureza, de simplicidade, de “retorno à fonte”. E, ao nível da música, se pode observar no mundo inteiro essas duas tendências convivendo: tecno music e forró pé de serra participam igualmente do mercado musical.

Como era Luiz Gonzaga pessoalmente?

Por mais que eu admirasse o artista Luiz Gonzaga eu não sabia nada sobre a personalidade do homem. Uma coisa é o talento artístico de uma pessoa, outra bem diferente é sua personalidade no dia a dia. Ao resolver passar uma temporada no Parque Aza Branca, eu corria o risco de ter que conviver com uma pessoa desagradável, chata, burra ou simplesmente com quem eu não me daria bem. Mas, ora, pelo contrário: tive a surpresa logo de cara de descobrir um homem inteligente, intelectualmente elegante, muito divertido, generoso, modesto, simples e cheio de defeitos… Portanto, tremendamente humano. Gostei muito dele, passei uma temporada maravilhosa junto dele e considero que foi um grande privilégio que a vida me concedeu ter conhecido e convivido com Luiz Gonzaga.

Alguma boa história que possa dividir conosco?

Houve muitas boas histórias com o “Seu” Luiz. Uma coisa que me divertiu muito foi como ele era um verdadeiro gourmet. Ele gostava de comer e de comer bem. Tanto que ele reclamava muito dos pratos servidos quase frios, da falta de sal. Quando a gente ia para o restaurante, volta e meia Seu Luiz invadia a cozinha e explicava ao mestre-cuca como é que se preparava o prato que ele tinha pedido. Era hilário.

* Cristiano Bastos é autor, entre outros, dos livros Gauleses Irredutíveis, Júpiter Maçã: Efervescente Vida e Obra, Nelson Gonçalves: O Rei da Boêmia. Lançou neste mês, pela Editora Zouk, seu livro de reportagens Nova Carne para Moer – Seleção de Textos Sobre Grandes Reportagens, Entrevistas, Artigos e Perfis.

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