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Pandemia expõe abismo entre trabalhadores da cultura e incentivos públicos

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Pandemia expõe abismo entre trabalhadores da cultura e incentivos públicos Foto: Daniel Sena/Agência Câmara Notícias

“Artista só vive de Lei Rouanet”. Você já deve ter ouvido alguém fazer essa afirmação ao se referir ao setor cultural no Brasil. A frase se revelou ainda mais equivocada depois de uma pesquisa feita com agentes culturais. Segundo estudo capitaneado pelo Observatório da Economia Criativa da Bahia (Obec-BA), a maioria nunca se beneficiou de qualquer tipo de incentivo público para concretizar sua arte. 

A pesquisa da Obec-BA, feita em parceria com diversas universidades brasileiras, entre elas a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mostrou que 62% das organizações e 75% dos indivíduos nunca se beneficiaram de incentivo fiscal em qualquer dos níveis governamentais. O levantamento também revela que 18% das organizações e 27% dos indivíduos tocavam seus projetos sem qualquer tipo de financiamento público.

“Artistas não vivem de dinheiro público. Quando perguntávamos qual era o maior impacto na renda das pessoas, a maioria apontava a venda de ingressos e de produtos como as principais fontes. É com isso que os trabalhadores contam, pois grande parte não tem acesso aos editais e aos outros mecanismos de fomento estatal”, afirma a professora Rosimeri Carvalho, que atua no Programa de Pós-Graduação em Administração da UFRGS e é pesquisadora do Obec. 

Burocracia é o motivo pelo qual os artistas não conseguem acessar os meios de fomento do setor cultural, um entrave que tem prejudicado a recuperação do setor, um dos mais afetados com a crise do coronavírus. Possuir um CNPJ ou CPF sem pendências, conhecer os meandros da legislação, receber as informações sobre editais, produzir um projeto que atenda aos requisitos formais e até fatores mais prosaicos, como acessar a internet, são os maiores empecilhos para democratizar a distribuição dos recursos públicos destinados à cultura.

“Percebemos a concentração dos incentivos nos atores culturais institucionalizados, com um perfil mais profissional. Os agentes culturais comunitários, como o músico do barzinho ou o mestre de capoeira, que vivem na comunidade e têm um papel fundamental na cadeia, não acessam nenhum tipo de financiamento ou incentivo público”, alerta a professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) Daniele Canedo, coordenadora do Obec-BA e uma das líderes da pesquisa.

Produtora cultural há 15 anos, Edna Souza nunca recebeu um real sequer de editais ou chamamentos para projetos culturais – e não foi por falta de tentativa. Já teve até projeto aprovado pela Lei Rouanet que acabou engavetado por falta de captação de recursos. “A burocracia trava tudo. E dentro dessa burocracia entra também o caráter subjetivo da avaliação. Às vezes, o avaliador não entende o projeto, e a ideia morre por falta de conhecimento”, reclama. Um exemplo da burocracia que engessa o fomento cultural, segundo Souza, é a Lei de Incentivo à Cultura Estadual (LIC), cujos trâmites são tão rigorosos e específicos que desestimulam pequenas produtoras a submeterem seus projetos. 

Captadores em falta

Outro entrave apontado pela produtora é a captação de recursos junto à iniciativa privada, o que requer uma figura escassa no mercado: a do captador. Profissional com perfil para vendas e com trânsito entre as empresas que podem destinar parte de seus impostos para a cultura, o captador é disputado pelas produções que têm projetos aprovados por leis de incentivo.

“Não tem um curso que forme profissionais para captação de recursos, o que dificulta. Dentro de um projeto já está prevista a rubrica do captador, mas muitos cobram um percentual antes, para cobrir as despesas que terão para executar o trabalho. Esse valor é inviável para muitos grupos que não têm dinheiro em caixa. Assim, o profissional de captação acaba pegando os projetos grandes, que têm mais apelo juntos aos patrocinadores”, destaca Souza.

Antes da pandemia, Edna Souza realizava edições regulares do projeto Fado na Cidade Baixa, em Porto Alegre, com apresentações de música portuguesa executadas pelo grupo Alma Lusitana, do qual é coordenadora e produtora. Também organizava anualmente a Romaria Portuguesa, festa inspirada nas tradições de Portugal que ocorria na escadaria da Igreja das Dores, no Centro.

Patrocínios e parcerias com empresas afins sempre foram a fonte de renda que possibilitou os eventos. Em agosto, o grupo Alma Lusitana foi contemplado com recursos do edital FAC Digital RS para a realização de uma live, que ocorreu no dia 12 de setembro. Como os recursos ainda não foram liberados, os integrantes contam com a vaquinha virtual arrecadada durante a transmissão ao vivo. A próxima apresentação já está agendada para o dia 17 de outubro, na página do grupo no Facebook. O cenário dessas lives é a casa de fado Maria Lisboa, na Cidade Baixa, um espaço dedicado à cultura portuguesa que também funcionava como cafeteria, fechado desde o início da pandemia. O local foi inscrito no edital para espaços culturais da Lei Aldir Blanc, mas o resultado ainda não saiu.

Lei Aldir Blanc é esperança de desburocratização

O acesso restrito aos mecanismos públicos de financiamento da atividade cultural é velho conhecido do setor. Segundo Fábio Cunha, presidente do Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões do estado (Sated-RS), os entraves impostos pela burocracia são tema de debate há anos, nas três esferas federativas.

“Para concorrer aos editais e leis de incentivo o sujeito tem que saber fazer projeto, tem que ter empresa, CNPJ, histórico na atividade, são muitas exigências. Entendemos isso, afinal se trata de dinheiro público, mas precisamos que isso se torne mais acessível”, alerta. Mas com a crise, a dificuldade de acesso aprofundou ainda mais a crise.

Cunha vê a aprovação da Lei Aldir Blanc como um avanço importante para a realização desse debate, já que reuniu muitos elos da cadeia, desde os trabalhadores até os empresários e administradores de espaços culturais. A legislação distribui ajuda federal (R$ 3 bilhões) em três frentes: 1) auxílio emergencial para os artistas pago pelos Estados; 2) uma ajuda aos espaços culturais fechados em razão da pandemia; e 3) editais para prêmios, que inclui apoio a projetos e eventos – os dois últimos pagos pelas prefeituras ou pelos Estados.

“A Aldir Blanc está obrigando o setor a se organizar como um todo, a estruturar seus movimentos, a construir fóruns permanentes de debate”, detalha Cunha. A organização que vem sendo feita revelou as fragilidades do sistema de apoio aos trabalhadores e os entraves burocráticos. Um exemplo: um técnico de som que tenha recebido mais de R$ 28,5 mil em 2018, mas que esteja parado em 2020, não tem direito ao auxílio de R$ 600, mesmo estando sem renda em função da pandemia. “Apesar desses problemas, a lei é muito importante para salvar as pessoas no curto prazo”, alerta Cunha. Para ele, o pagamento do auxílio já deveria ter começado no Rio Grande do Sul, pois grande parte dos trabalhadores está passando necessidade. O cadastro dos trabalhadores está em andamento, mas os pagamentos ainda não iniciaram. 

Na opinião de Cunha, o acesso não só ao auxílio emergencial mas também aos mecanismos de fomento deve ser ampliado e simplificado. “Compreendemos, nesse momento tão difícil, que a cultura é sobrevivência. Além de nos manter vivos, ela também gera empregos, impostos, faz a economia girar”, completa Cunha.

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