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Podcast relembra os 200 anos da viagem de Saint-Hilaire pelo RS

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Podcast relembra os 200 anos da viagem de Saint-Hilaire pelo RS

Há 200 anos, em 5 de junho de 1820, depois de percorrer outras regiões do Brasil, o botânico francês Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853) cruzava o rio Mampituba para conhecer o extremo sul do país, anotando suas impressões em um diário. O relato – uma fonte de pesquisa relevante sobre a fauna, a flora, a geografia e os habitantes da então Capitania do Rio Grande de São Pedro do Sul – inspira os primeiros episódios do podcast Histórias de Viamão, disponível em diversas plataformas e comandado pelo historiador e gestor cultural viamoense Vitor Ortiz.

“Tudo começou a partir do isolamento social iniciado em março. Uma das minhas principais ocupações, a organização do Festival Virada Sustentável em Porto Alegre, foi adiada. Aí sobrou tempo para tocar essa ideia. Pensei na criação de um canal que funcionasse como um projeto de memória cultural”, conta o idealizador do podcast.

Os primeiros episódios narram a chegada de Saint-Hilaire ao Estado e suas passagens por Viamão, onde se hospedou na Fazenda Boa Vista, uma das mais importantes daquele período. Nos relatos do francês, segundo Ortiz, destaca-se o caráter científico de suas observações e catalogações: “No século 19, quando o viajante veio a estas terras, os europeus já frequentavam e exploravam as Américas há mais de três séculos. Nunca antes, porém, com esse espírito observador que mobilizava os cientistas”.

Tal espírito, no entanto, não estava imune a entendimentos marcadamente preconceituosos, comuns à época, em relatos de europeus sobre as populações indígenas e negras na América Latina. “Cuidamos para não tomar suas afirmações sem considerar a questão da alteridade, do eurocentrismo e as influências das autoridades da época sobre suas conclusões”, conta o idealizador do projeto.

Historiador pela UFRGS e autor do livro Histórias de Viamão – Histórias do Rio Grande (Editora Libretos, 2015), Ortiz já foi secretário-executivo do Ministério da Cultura, diretor da Funarte e secretário de Cultura das prefeituras de Porto Alegre, São Leopoldo e Viamão.

Confira a entrevista com Vitor Ortiz sobre o podcast Histórias de Viamão e a viagem de Saint-Hilaire ao sul do Brasil.

Qual a proposta do projeto?

A proposta é debater, difundir e desmistificar a história de Viamão. Buscamos uma visão crítica, contemporânea, plural, e não dogmática – tem muito disso na historiografia tradicional gaúcha, que idolatra os estancieiros e ignora o papel dos mais humildes, dos pobres, dos negros, dos índios. A cidade vivenciou episódios tidos como épicos, heroicos ou dramáticos, como os sofrimentos causados pela escravidão, pela desigualdade social e pelos preconceitos; histórias do tempo da inquisição; desdobramentos em torno da questão indígena; e muitas outras abordagens possíveis de serem resgatadas.

Como tem sido a experiência de mergulhar na história da viagem de Saint-Hilaire, de Viamão e do Rio Grande do Sul?

Esse interesse pela pesquisa da história do Rio Grande do Sul e de Viamão é anterior ao período da faculdade de História. Cultivo desde menino, porque me criei ouvindo essas histórias. O Centro de Viamão, quando eu era criança, ainda preservava um casario colonial em volta da Igreja Nossa Senhora da Conceição.

Qual a importância do relato de Saint-Hilaire?

Os diários de Saint-Hilaire são uma janela para o que estava ocorrendo em 1820. Eles trazem conteúdos muito interessantes para o estudo de diversas questões, não só da botânica e da história, mas também da geologia, da geografia e principalmente da antropologia – como a questão indígena, da escravidão, das mulheres e das desigualdades.

Interessa muito, na atualidade, para que possamos fomentar debates e analisar pelo menos três questões que estão na origem da formação político-cultural do Estado: em primeiro lugar, a escravidão, o preconceito e a desigualdade social; em segundo, as formas aplicadas pela Coroa portuguesa e pelos próprios estancieiros para fazerem desaparecer as diversas nações indígenas que habitavam o território; por fim, a militarização da cultura política regional – que, mais tarde, deu margem à eclosão da Guerra Farroupilha, em 1835; da Guerra Civil Federalista, em 1893; do Levante dos Maragatos, em 1923; e à participação dos gaúchos na Revolução de 1930, aí incluída a força da cultura militar e autoritária que se expressou principalmente no Estado Novo, durante a Era Vargas.

Essa cultura militarista, depois incensada pelo positivismo de Augusto Comte, é até hoje dominante nas hostes militares brasileiras. Não à toa, três dos cinco presidentes do período da ditadura eram gaúchos (Emílio Garrastazu Médici, Artur da Costa e Silva e Ernesto Geisel – e, ainda hoje, militares gaúchos como o general Villas Boas são muito influentes no Exército brasileiro.

As origens dessa cultura é a espoliação do legado jesuíta e guarani, o massacre dos índios pampianos, a subjugação das mulheres, a exploração do trabalho escravo e a violência, sob a qual se estabelecia o domínio do caudilho. Bandeirantes que viraram estancieiros donos de escravos negros e apresadores de índios, com patentes oficiais de coronéis e capitães, são os ancestrais desse militarismo tosco que até hoje assombra a nação.

Qual foi o itinerário de Saint-Hilaire pelo Rio Grande do Sul?

Ele entrou por Torres em 5 de junho de 1820. Naquele dia, há 200 anos, Saint-Hilaire cruzou o Mampituba, rio sobre o qual anotou em seu diário traduzir-se da língua indígena com a expressão Père do Froid (Pai do Frio, em francês). Ele sabia que estava chegando a um território, nesta época do ano, governado pelas baixas temperaturas.

Saint-Hilaire percorreu o Litoral Norte até Tramandaí e depois descobriu a fazenda Boa Vista e a Igreja Nossa Senhora da Conceição, em Viamão. Chegou a Porto Alegre em 21 de junho de 1820, de onde partiu para Rio Grande em uma viagem com o conde da Figueira – à época, comandante da Capitania. Esse percurso fez o botânico retornar a Viamão e se hospedar outra vez na fazenda Boa Vista, uma das mais importantes da época, e de lá seguir por Palmares, Mostardas e São José do Norte, até passar o canal da Lagoa dos Patos para o lado sul, onde fica Rio Grande. Depois seguiu em direção ao Uruguai, até Montevidéu e Colônia do Sacramento.

Na sequência, foi às Missões, retornando na direção de Rio Pardo, e de lá até Porto Alegre, pelo rio Jacuí. Quase um ano depois de ter atravessado o Mampituba, já em maio de 1821, ele deixa a capital da Capitania. Sua ideia inicial era retornar ao Rio de Janeiro por terra, mas ele desiste ao saber que os caminhos entre Viamão e Laguna estavam inundados. Partiu, enfim, numa sumaca, que o levou até Rio Grande no dia 19 de junho, dois dias antes de completar um ano de sua chegada a Porto Alegre.

Qual o tema do próximo episódio do podcast, que entra no ar neste domingo (7/6)?

O sexto episódio narra a chegada de Saint-Hilaire à Fazenda Boa Vista. A história desta estância, uma das mais antigas do Estado, é muito rica em informações e dados que ajudam a entender um pouco melhor a história da região: teve charqueada, curtume, porto, uma grande quantidade de escravos e mais de dez mil cabeças de gado. Depois teremos mais dois ou três episódios, até a chegada de Saint-Hilaire a Porto Alegre. Sobre essa passagem, temos um plano de criar alguns programas especiais com entrevistas.

Por fim, qual experiência tu buscas provocar nos ouvintes?

Uma das questões principais na forma do podcast é evitar o tom doutrinário e procurar o dialógico, a conversa da roda de chimarrão. Eu desejei algo agradável, que possa ser gostoso de ouvir e que, ao mesmo tempo, aceite a inserção de referências teóricas e bibliográficas, para manter o padrão de excelência acadêmica do projeto.

Confira também:

O blog Viamão Antigo, parceiro do Histórias de Viamão, reúne informações, relatos e imagens sobre a cidade.

O formato podcast tem sido utilizado por diversas iniciativas historiográficas. Clique para acessar e saber mais sobre os projetos Escutando História, História Preta, História FM e HUMANAS.

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