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Espetáculo “Sobrevida” apresenta experiências de quem vive com HIV

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Espetáculo “Sobrevida” apresenta experiências de quem vive com HIV Foto: Bob Sousa

Em cartaz até 20 de fevereiro, sempre às 20h, no Teatro Bruno Kiefer (Casa de Cultura Mario Quintana), o espetáculo Sobrevida, dirigido por Jaques Machado, retrata momentos da vida de um ator – interpretado por Lincoln Camargo e Xandre Martinelli – que revela seu diagnóstico positivo para HIV. A peça fez temporadas recentes no Porto Verão Alegre e no 29º Festival Mix Brasil e foi contemplada com uma residência artística no Centro Cultural da Diversidade, em São Paulo.

“Foi um processo de repassar minhas memórias, buscar e-mails escritos para a minha infectologista e encontrar os primeiros exames para ajustar a cronologia de datas dos acontecimentos”, conta o diretor do espetáculo, diagnosticado como soropositivo em 2011.

“Nos primeiros anos, descobri que o medo de falar sobre o meu diagnóstico para amigos e para as pessoas com quem me relacionava era uma morte e um renascimento. A escrita dramatúrgica partiu desses conceitos: vida, morte e renascimento”, completa Machado, que estreia como diretor teatral em Sobrevida – leia a entrevista a seguir.

Durante o processo de concepção da peça, inicialmente pensada para ser um monólogo, Machado acabou optando por uma dramaturgia com dois atores, que interpretam o protagonista e outros personagens. A atriz e bailarina Angela Spiazzi faz a direção de movimento do espetáculo, Ricardo Vivian assina a iluminação cênica e Rodrigo Shalako é responsável pela cenografia.

Na visão de Machado, atualmente a maioria dos debates sobre o HIV e a doença provocada pelo vírus têm se restringido a ocasiões pontuais como o Dia Mundial de Luta contra a Aids (1º de dezembro). Além de ampliar as discussões sobre o tema nos palcos, o diretor busca refletir sobre as experiências de quem é soropositivo.

“Precisamos humanizar essa vivência. Não para dizer que não é preciso prevenir e que viver com o vírus é legal, mas para dar rosto aos números que sempre jogam na nossa cara o quanto ainda as pessoas não se cuidam, visto que o número de novas infecções é sempre alto e que o Rio Grande do Sul sempre é protagonista nessas estatísticas”, observa o diretor.

Segundo o Boletim Epidemiológico HIV/Aids 2021 do Ministério da Saúde, foram registrados 32.701 novos casos de HIV e 29.912 de aids no Brasil em 2020. A taxa de mortalidade no RS é de 7,2 óbitos por 100 mil habitantes – superior aos 4 por 100 mil da média nacional. Ainda segundo o relatório, Porto Alegre é a capital brasileira com a maior taxa de mortalidade por aids: 24,1 óbitos por 100 mil habitantes – número seis vezes maior do que a taxa nacional.

O espetáculo Sobrevida oferece ingresso gratuito para todas as pessoas imunossuprimidas que já tenham se vacinado com a quarta dose da vacina contra a covid-19. A ação busca incentivar pessoas que vivem com HIV a assistirem à peça. Não será questionado o motivo da quarta dose, basta apresentar comprovante de vacinação na bilheteria – confira o serviço completo ao final da entrevista.

Leia a entrevista com o diretor Jaques Machado.

Como se deu a construção do espetáculo e a escolha de dois atores para interpretar o protagonista?

Comecei a escrever o espetáculo no início de 2021 pensando que seria um monólogo. Foi um processo de repassar minhas memórias, buscar e-mails escritos para a minha infectologista e encontrar os primeiros exames para ajustar a cronologia de datas dos acontecimentos. Durante a escrita, já imaginava as cenas, e fui pensando também na trilha – a maior parte das músicas que estão hoje no espetáculo serviram como estímulo para o processo da dramaturgia.

Depois comentei com os atores, Xandre e Lincoln, que o texto estava pronto. Eles são meus parceiros de trabalhos anteriores, artistas fantásticos que admiro e me inspiram. Apesar de não termos oficializado um coletivo, comungamos de semelhanças e diferenças que nos unem no teatro e na educação. Além disso, eles se entregaram, estudaram e questionaram tanto os momentos e sentimentos desse personagem que são autores também dessa obra.

Na primeira leitura, me dei conta de que precisava adaptar para que os dois estivessem em cena. Percebi que ganhávamos muito na encenação com dois atores vivendo o mesmo personagem. Voltei ao texto, adaptei e, mais tarde, fizemos uma nova leitura. Vacinados e com máscaras, começamos um tímido processo de ensaio presencial que se tornou intenso após o convite para a residência artística no Centro Cultural da Diversidade e a estreia em São Paulo.

Como foi essa residência?

Quando recebemos a notícia, a alegria foi gigantesca. Porto Alegre tem uma potência cultural primorosa e reconhecida (nem sempre valorizada, é verdade), mas estrear um trabalho autoral em São Paulo foi a chance de não só romper uma barreira geográfica, mas também ampliar relações e criações. Ao longo do processo, passamos de uma viagem e estadia em São Paulo para cinco idas e vindas e uma semana de imersão em tempo integral no Centro Cultural da Diversidade. Foi onde conseguimos ensaiar e finalizar o espetáculo com toda a estrutura de cenário, figurino e o trabalho de direção de corpo da Angela Spiazzi.

O Ricardo Vivian, responsável pela criação e execução da iluminação, viveu essa semana junto conosco, e o resultado é espetacular. Junto com a caixa cênica própria criada pelo Rodrigo Shalako, a luz se tornou um personagem nessa trama. Precisamos arcar com novos custos financeiros que não estavam previstos – ainda estamos nos recuperando disso –, mas o ganho de experiência e vivência superou tudo isso.

Foto: Bob Sousa

Em artigo publicado no site Nonada, você menciona a intenção de não apresentar uma leitura romantizada do tema. Qual abordagem você buscou?

Há muitos anos o Brasil faz campanhas de prevenção, divulgação de informações e ações de acolhimento e tratamento do HIV através do SUS que são extremamente necessárias e bem-sucedidas, apesar dos constantes ataques do governo atual. Porém, o preconceito e o estigma da sociedade persistem de uma maneira tão enraizada – mesmo 40 anos após o primeiro caso – que faz com que, ainda hoje, pessoas ignorem o tratamento quando se descobrem soropositivas, apenas por medo de como será a sua vida. Muita gente ainda encara como uma sentença de morte.

Antes da pandemia, um amigo descobriu ser soropositivo, simplesmente ignorou e morreu tempos depois. Após o funeral é que ficamos sabendo o real motivo da morte – e claro, pensei que, se ele soubesse da minha condição, talvez algo poderia ter sido diferente, poderíamos ter conversado sobre a vida soropositiva. Abrir o meu diagnóstico, contar a minha história e como eu passei por esse processo nos primeiros anos após a descoberta da sorologia através do teatro é uma tentativa de dar cara para esse viver com HIV e quebrar a barreira de assumir o diagnóstico. Falar salva!

Poderia nos falar sobre o título do espetáculo?

O termo “sobrevida” foi dito por um médico quando recebi o diagnóstico. Lembro que, naquela época, em 2011, essa palavra me assustou muito. Parecia o fim da minha vida, o que eu vivesse dali em diante seria uma contagem regressiva para o fim de tudo. Nos primeiros anos, descobri que o medo de falar sobre o meu diagnóstico para amigos e para as pessoas com quem me relacionava era uma morte e um renascimento. A escrita dramatúrgica partiu desses conceitos: vida, morte e renascimento. Como as decisões que fiz em vida me fizeram chegar ao HIV, como vivo a minha sobrevida e como pequenas mortes e renascimentos acontecem desde então, quase todos os dias, e a cada sessão do espetáculo.

Foto: Bob Sousa

Como tem sido para você estrear como diretor de teatro abordando essa temática e sendo soropositivo?

Só o fato de estrear no processo de conduzir os atores e criarmos juntos toda a encenação do espetáculo já é mais do que desafiador. Ao mesmo tempo, digo a Xandre, Lincoln e Angela que sou muito agradecido por eles acolherem e por confiarem que eu seria capaz de realizar isso. Agora que o medo e o sentimento de incerteza da estreia já passaram, tem sido menos tenso e ao mesmo tempo de uma realização sem precedentes.

Desde o Ensino Médio, já tinha claro que queria ser ator e trabalhar com as artes, mas nunca me imaginava sendo diretor. A descoberta de que eu era capaz de dirigir um espetáculo começou com a professora e diretora Inês Marocco nas disciplinas da graduação em teatro na UFRGS. Junto com tudo isso, ainda falando sobre o HIV e parte da minha trajetória, é quase como passar a limpo memórias e histórias recentes e exorcizar medos e fantasmas que ficaram adormecidos pelo caminho. O medo de falar sobre o assunto para algumas pessoas se tornou um grito através do espetáculo, na tentativa de alertar e ajudar outras pessoas.

Como você vê o momento atual em torno do HIV? Estamos falando pouco a respeito? Em que medida o estigma e a desinformação persistem?

Sim, acredito que a gente fale pouco sobre o HIV. Isso praticamente acontece só no mês de dezembro em função do Dia Mundial de Luta contra a Aids. Felizmente temos informação, campanhas e tratamentos disponíveis através do SUS. Porém, o fato é que as pessoas negam que possa acontecer com elas. Quando acontece, são tomadas por um medo e uma vergonha que alimentam o preconceito enraizado. O negacionismo visto agora na pandemia do coronavírus não é tão novo assim.

O crescimento das redes sociais fez várias pessoas compartilharem suas experiências de vida positiva através do Youtube, do Instagram e do TikTok, e isso nos ajuda a desmistificar o viver com HIV. Com o Sobrevida, quero trazer a minha contribuição através da arte. Assim como as pessoas se encontram com os influencers que falam sobre o HIV, quero que se encontrem e debatam isso com a sensibilidade e a potência que o teatro pode proporcionar.

Por muitos anos, falamos sobre o HIV através de números e uma carga pesada sobre o assunto. Agora precisamos humanizar essa vivência. Não para dizer que não é preciso prevenir e que viver com o vírus é legal, mas para dar rosto aos números que sempre jogam na nossa cara o quanto ainda as pessoas não se cuidam, visto que o número de novas infecções é sempre alto e que o Rio Grande do Sul sempre é protagonista nessas estatísticas.

Espetáculo Sobrevida

De 16 a 20 de fevereiro, sempre às 20h

Onde: Teatro Bruno Kiefer – 6º andar da Casa de Cultura Mario Quintana (Rua dos Andradas, 736 – Centro Histórico – Porto Alegre)

Ingressos: R$ 50 (inteira), R$ 25 (estudantes, idosos, doadores de sangue e classe artística) – à venda no site Entreatos Divulga até a hora do espetáculo. Venda na bilheteria a partir das 19h, em dinheiro ou PIX. Gratuito para imunossuprimidos com apresentação de comprovação da quarta dose na bilheteria uma hora antes da sessão.

Protocolos: será exigido o comprovante de vacinação contra a covid-19 e documento com foto, além de exigência de uso de máscara de forma adequada e distanciamento entre as poltronas. 

Entre as iniciativas que se dedicam a ampliar a prevenção da doença e o diagnóstico do vírus, Machado destaca as ações do projeto A Hora É Agora, iniciado em Curitiba e atuando em Porto Alegre desde setembro de 2021.

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