Filosofia na vida real

Até que a imaginação os separe – Cena 6

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Até que a imaginação os separe – Cena 6

Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus

O casamento é uma ferramenta de cooperação. Quanto mais variadas as formas de associação no casamento, maiores as chances de cooperar. No entanto, ingressar numa empreitada cooperativa é também assumir riscos. Alguns calculados, outros nem tanto. Em qualquer agrupamento humano abundam free-riders, preguiçosos, traíras e chupins. Mas seguidamente topamos com industriosos, confiáveis, magnânimos e altruístas. Dureza é saber quem é o que antes de aproximar corpos e escovas de dente. 

A instituição do casamento é uma das formas de estruturação da relação de parentesco e, portanto, da família. Quando os riscos no casamento são evidentes, as famílias encontram vias alternativas de constituição. 

O relato testemunhal de Quarto de Despejo: Diário de uma favelada dá clara demonstração de um cruel dado demográfico brasileiro. Quando os indicadores do gênero feminino, da raça negra e da classe E se cruzam no ponto mais extremo da desigualdade: a verdadeira família tradicional da estatística brasileira é monoparental feminina. Em palavras menos pomposas, quando o bicho pega, quem segura o rojão na família é uma mãe solteira, negra e pobre.

No contexto narrativo de Quarto de Despejo, o risco que o casamento representa para as mulheres é fácil de calcular, quase evidente (mantemos aqui a forma impressa): 

Elas alude que eu não sou casada. Mas eu sou mais feliz do que elas. Elas tem marido. Mas, são obrigadas a pedir esmolas. São sustentadas por associações de caridade. 

Os meus filhos não são sustentados com pão de igreja. Eu enfrento qualquer especie de trabalho para mantê-los. E elas, tem que mendigar e ainda apanhar. Parece tambor. A noite enquanto elas pedem socorro eu tranquilamente no meu barracão ouço valsas vienenses. Enquanto os esposos quebra as tabuas do barracão eu e meus filhos dormimos socegados. Não invejo as mulheres casadas da favela que levam vida de escravas indianas.

Não casei e não estou descontente.

Uma das metáforas campeãs de audiência do protofeminismo filosófico é a equiparação da mulher casada com a condição da escrava. Nas palavras de Mary Astell, no famoso prefácio de 1706 de Some Reflections Upon Marriage, mulheres casadas encontram-se submetidas “à vontade inconstante, incerta, desconhecida e arbitrária dos homens”. Ou seja, encontram-se na “condição própria da escravidão”. 

Nas palavras de Carolina Maria de Jesus a comparação deixa de ser metáfora e passa a ser a regra de um jogo de cartas marcadas: 

…Estou residindo na favela. Mas se Deus me ajudar hei de mudar daqui. Espero que os políticos estingue as favelas. Há os que prevalecem do meio em que vive, demonstram valentia para intimidar os fracos. Há casa que tem cinco filhos e a velha é quem anda o dia inteiro pedindo esmola. Há as mulheres que os esposos adoece e elas no penado da enfermidade mantem o lar. Os esposos quando vê as esposas manter o lar, não saram nunca mais.

Lembra dos free-riders do primeiro parágrafo? Ei-los aqui novamente, na figura dos “esposos…que não saram nunca mais”.

Uma conversa ocasional com a Dona Julita confirma o veredito sobre os homens que não prestam: 

Cheguei na rua Frei Antonio Santana de Galvão 17, trabalhar para a Dona Julita. Ela disse-me para eu não iludir com os homens que eu posso arranjar outro filho e que os homens não contribui para criar o filho. Sorri e pensei: em relação aos homens, eu tenho experiências amargas. Já estou na maturidade, quadra que o senso já criou raizes. 

Se a memória autobiográfica ou os conselhos da Dona Julita não forem suficientes, as constantes e espalhafatosas brigas de casais na vizinhança da favela do Canindé dão motivos de sobra para que a narradora de Quarto de Despejo assuma conscientemente o papel de mãe solteira, mesmo quando imersa nas adversidades do trabalho de catadora: 

Que suplicio catar papel atualmente! Tenho que levar a minha filha Vera Eunice. Ela está com dois anos, e não gosta de ficar em casa. Eu ponho o saco na cabeça e levo-a nos braços. Suporto o peso do saco na cabeça e suporto o peso da Vera Eunice nos braços. Tem hora que revolto-me. Depois domino-me. Ela não tem culpa de estar no mundo. 

Refleti: preciso ser tolerante com os meus filhos. Eles não tem ninguém no mundo a não ser eu. Como é pungente a condição da mulher sozinha sem um homem no lar. 

A figura paterna recebe um tratamento lacônico e expeditivo em Quarto de Despejo. Estas duas passagens falam por si: 

…Dei leite para a Vera. O que eu sei é que o leite está sendo despesas extras e está prejudicando a minha minguada bolsa. Deitei a Vera e saí. Eu estava tão nervosa! Acho que se eu estivesse num campo de batalha, não ia sobrar ninguem com vida. Eu pensava nas roupas por lavar. Na Vera. E se a doença fosse piorar? Eu não posso contar com o pai dela. Ele não conhece a Vera. E nem a Vera conhece ele. 

Tudo na minha vida é fantástico. Pai não conhece filho, filho não conhece pai.

10 de Agosto. Dia do Papai. Um dia sem graça.

Da autocrítica da narradora nem mesmo a maternidade escapa do escrutínio: 

Tive sonhos agitados. Eu estava tão nervosa que se eu tivesse azas eu voaria para o deserto ou para o sertão. Tem hora que eu revolto comigo por ter iludido com os homens e arranjado estes filhos.

Outra imagem importante na radiografia do casamento em Quarto de Despejo é a compreensão da quase incompatibilidade entre as personas da esposa e da escritora: 

…De manhã eu estou sempre nervosa. Com medo de não arranjar dinheiro para comprar o que comer. Mas hoje é segunda-feira e tem muito papel na rua. (…) O senhor Manuel apareceu dizendo que quer casar-se comigo. Mas eu não quero porque já estou na maturidade. E depois, um homem não há de gostar de uma mulher que não pode passar sem ler. E que levanta para escrever. E que deita com lapis e papel debaixo do travesseiro. Por isso que eu prefiro viver só para o meu ideal.

A vida examinada se diz de diferentes formas. Uma dessas formas é viver de acordo com um ideal. Em especial, quando este ideal é o resultado de uma escolha marcada pela autonomia. Para Carolina, o ideal a ser perseguido é escrever, tornar-se uma profissional da escrita. Enquanto que para muitas mulheres de sua geração, mesmo que em distintas estratificações de raça e classe, o casamento era uma das poucas estratégias disponíveis para emancipação social, é a sua devoção à literatura que cumpre a função de verdadeiro trampolim para um horizonte além da favela. 

O seu diário registra desde o início a convicção quase bíblica de que a palavra cria o mundo e muda a forma das pessoas se conectarem entre si e com este mundo assim criado.  

E como medimos a autonomia de uma escolha? No caso particular de Carolina, a medição é facilitada pelo ineditismo da sua aposta. Quantas mulheres negras, catadoras, moradoras de favelas, com pouca educação formal, apostaram na literatura como porta de saída da miséria? Este ineditismo talvez ajude a explicar o sucesso estrondoso da recepção de Quarto de Despejo no começo da década de 60. 

Eu não poderia encerrar este breve comentário sem mencionar um dos trechos que, para o meu bico, está entre os mais deliciosamente críticos de Quarto de Despejo:

…Fui lavar as roupas. Na lagoa estava a Nalia, a Fernanda e a Iracema, que discutiam religião com uma senhora que dizia que a verdadeira religião é a dos crentes. 

A Fernanda diz que a Biblia não manda ninguem casar-se. Que manda crescer e multiplicar. Eu disse para a Fernanda que o Policarpo é crente e tinha varias mulheres. Então a Fernanda disse que o Policarpo não é crente. 

– É quente! 

Achei graça no trocadilho e sorri. Dei uma gargalhada. E coisa que eu não discuto é religião.

Se na década de 50 do século passado a ingerência religiosa na percepção socialmente distribuída sobre o casamento já fazia escola no Brasil, o tempo presente não nos dá um cenário mais auspicioso. Em especial, para quem preza a laicidade das decisões de Estado que impactam o conceito de família.  

Mesmo que a narradora de Quarto de Despejo não queira explicitamente discutir a hipocrisia do comportamento do Policarpo, a sua gargalhada, reagindo à troça de Fernanda, já informa sobre a direção que esta discussão poderia seguir. Por vezes, uma risada desabrida é o passo decisivo que antecede a crítica. São raras as ocasiões para gargalhar em Quarto de Despejo. Creio que é especialmente revelador que este momento de graça esteja localizado precisamente em uma conversa onde convergem os temas da religião e do casamento. 

Carolina Maria de Jesus nos ensinou que o modelo da “família tradicional brasileira”, defendido pelas Marchas da Família com Deus pela Liberdade ou pela Ministra Damares, pode representar um risco demasiado para as mulheres. Mais prudente ouvir valsas vienenses enquanto “os esposos quebra as tabuas do barracão” na vizinhança. 

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