Juremir Machado da Silva

A verdadeira esquerda brasileira morreu?

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A verdadeira esquerda brasileira morreu? Manifestação em defesa da democracia, na Cinelândia, Rio de Janeiro, em 8 de janeiro de 2024 | Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Vladimir Safatle é um intelectual sofisticado. Maneja ideias filosóficas complexas com desenvoltura. Ele acaba de lançar um novo livro, Alfabeto de colisões (editora Ubu). Professor da USP, militante do PSOL, Safatle tem muito prestígio no meio progressista. A tese do seu novo livro, porém, é curiosa: as esquerdas brasileiras estariam mortas. Só a extrema direita vicejaria. Por que esse diagnóstico? Porque as esquerdas teriam abdicado do seu compromisso revolucionário, tornando-se apenas uma “constelação de progressismos”. O autor parece sentir uma espécie de inveja desse extremismo ideológico da direita. A esquerda – ou as esquerdas – estaria domesticada. Uma morte por encolhimento da utopia e das promessas.

Volto a Cornelius Castoriadis, que, em A instituição imaginária da sociedade, de 1974, desmontou o determinismo do conceito de luta de classes do marxismo com ironia e precisão: “De fato, as classes são somente o instrumento no qual se encarna a ação das forças produtivas. Se são atores, o são exatamente no sentido em que os atores no teatro recitam um texto dado previamente e executam gestos predeterminados, e onde representando bem ou mal, não conseguem impedir que a tragédia se encaminhe em direção ao seu fim inexorável”. Esse roteiro faliu. Restava a revolução voluntariosa, por determinação das vanguardas conscientes, capazes de conduzir o proletariado ao paraíso terreno. Essa vertente também não faz mais sucesso no mercado das utopias.

Por que não faz? Digamos que as amostragens, mesmo negadas como tal, não se revelaram promissoras. Restaria desconsiderar tais experiências como falsas e apostar em novas tentativas legítimas. Esse pagar para ver novamente não chega a ser convincente. Criticar os problemas do capitalismo está na ordem do dia com força e razão. Propor resolvê-los pela revolução marxista são outros quinhentos. A tese contrária a de Safatle não seria mais justa? A esquerda vive justamente por ter desistido da revolução e investido numa “constelação de progressismos” que, posta em prática, melhora o cotidiano das pessoas e corrige o capitalismo? Ah, corrigir o capitalismo é pouco? Impossível? Uma cruel astúcia do sistema?

Nessa lógica, é tudo ou nada. Fora disso, cresce a nostalgia da revolução. Safatle lamenta que não se fale mais em “autogestão da classe trabalhadora”. Quem é a classe trabalhadora? Só quem ainda trabalha em fábricas? Castoriadis, que não pode ser acusado de direitista, fustigava: “Não é por acaso que a ideia de uma política capitalista, mais ou menos ‘inteligente’, parece sempre, para um marxista, como uma estupidez que esconde uma mistificação”.

Só a revolução salva. Qualquer melhora fora dela seria um logro. Castoriadis dizia mais: “Não é também por acaso que resistiremos com obstinação à ideia de que o capitalismo moderno tentou adaptar-se à evolução histórica e à luta social, modificando-se em consequência. Isso seria admitir que a história do último século não foi exclusivamente determinada por leis econômicas, e que a ação de grupos e classes sociais pôde modificar as condições nas quais essas leis agem e através disso o seu próprio funcionamento”. E se nesse processo de pressão e adaptação a classe trabalhadora passou a achar mais interessante continuar no jogo do que se jogar na revolução?

Se a revolução dá errado, não é a nossa. Pode ser, contudo, que a massa não queira mais dobrar a aposta e encontre mais benefícios fazendo o capitalismo mudar. Mais do que isso, fazendo que acredite ser tudo pura astúcia dele para continuar dominando os trabalhadores.

Alfabeto de colisões é distribuído no Rio Grande do Sul pela Bússola (Leopoldo Bier, 644). Fica a sugestão de leitura.

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