Juremir Machado da Silva

A imprensa disse sim três vezes ao golpe

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A imprensa disse sim três vezes ao golpe Tanques no Congresso Nacional após golpe de 1964 | Arquivo Público do Distrito Federal

A mídia disse sim antes, durante e depois do golpe. Nos 15 anos da ditadura, Thereza Cesário Alvim organizou e publicou um livro revisionista: O golpe de 1964: a imprensa disse não (1979). Ela reuniu textos publicados nos jornais ao longo do primeiro ano do regime militar. Estrategicamente os textos escolhidos cobrem o período que começa com os primeiros arrependimentos. O período das adesões ditirâmbicas fica no esquecimento. A lista dos então heróis da resistência inclui Alceu Amoroso Lima, Antônio Callado, Barbosa Lima Sobrinho, Carlos Drummond de Andrade, Carlos Heitor Cony, Edmundo Moniz, Gilberto Paim, Hermano Alves, Joel Silveira, José Carlos Oliveira, Márcio Moreira Alves, Mário Martins, Moacir Werneck de Castro, Newton Rodrigues, Otto Lara Resende, Otto Maria Carpeaux, Sérgio Porto, Rubem Braga e a própria organizadora.

Nem todos dessa lista disseram não ao golpe. Muitos deles disseram sim ao golpe e não à ditadura. João Amado, no seu artigo para o “Observatório de Imprensa”, cita texto publicado na Folha de S. Paulo, em 30 de novembro de 2002, por Carlos Heitor Cony sobre sua participação nos editoriais “Basta!” e “Fora!”:  “Elio [Gaspari] realmente me perguntou sobre o assunto e eu disse o que sabia. O jornal vinha combatendo o governo de João Goulart, que entrava em decomposição, criando um cenário que poderia descambar numa guerra civil. (…) Na crise de 1964, os editoriais eram discutidos exaustivamente pela equipe liderada por Moniz e da qual faziam parte Otto Maria Carpeaux, Osvaldo Peralva e Newton Rodrigues, entre outros. Eu estava recém-operado, no meu apartamento em Copacabana, e Edmundo Moniz, que ia me visitar todos os dias, telefonou-me para comunicar que Carpeaux desejava pisar forte, com um editorial virulento contra Jango. O próprio Carpeaux sugerira que Moniz me consultasse, uma vez que nós dois éramos afinados, tanto em política como em literatura. Minha participação limitou-se a cortar um parágrafo e acrescentar uma pequena frase. Hora e meia mais tarde, Moniz telefonou-me outra vez, lendo o texto final que absorvia a colaboração dos editorialistas, e, embora o conteúdo fosse o piloto elaborado por Carpeaux, a linguagem traía o estilo espartano do próprio Moniz. Como disse ao Elio Gaspari, um bom editorial é obra coletiva como uma catedral gótica. Não expressa o pensamento de um indivíduo, mas o clima de uma época”.

Catedral de pecadores que preferem o anonimato para aliviar suas culpas mortais tratadas como se fossem meros pecados veniais. Nenhuma dúvida: Carpeaux, Newton Rodrigues, Edmundo Muniz, Carlos Heitor Cony e Antônio Callado, que aparecem dizendo não no livro de Thereza Cesário Alvim, disseram sim ao golpe nos seus jornais nos idos de março.

João Amado cita também Edmundo Moniz, apontado como autor dos editorais em questão, “em entrevista concedida ao jornal Folha de S. Paulo em 12 de janeiro de 1979”: “Eu só sou autor daquilo que eu assino (…). O artigo foi feito pela redação e eu não posso dizer o autor dos artigos, eles são de responsabilidade do jornal. Aqueles dois editoriais foram muito alterados, talvez fossem escritos por muita gente. Não escrevi o artigo, mas o alterei. Toda a redação mexeu”. Os textos teriam sido, assinala ainda João Amado, citando Ruy Castro, esboçados por Osvaldo Peralva, finalizados e titulados por Moniz Vianna. Há muitos pais e padrastos para esses filhos bastardos. Sem dúvida, foi um rebento coletivo. Toda a redação do “Correio da Manhã” disse sim ao golpe. Cony, a bem da verdade, foi um dos primeiros a saltar dessa canoa furada.

Nas páginas do livro de Thereza Cesário Alvim tudo é mais bonito. A imprensa carioca destaca-se pela resistência ao longo do primeiro ano do regime militar. A adesão anterior é quase esquecida. As contradições já começam no texto de apresentação (uma falsa “orelha”) do editor Ênio Silveira: o golpe teria sido “prematuro, imperfeito em termos logísticos, mal alinhavado no plano estratégico, arriscado no campo tático”. Essa visão é logo desmentida pela própria organizadora da obra: “Muito mais sério e eficaz havia sido o esquema promocional elaborado e posto em prática, com know-how altamente especializado, para possibilitar esse golpe que vinha de longe, desde 1955 (…) Em 1961, sem prever um desfecho tão rápido para o contraditório Governo Jânio Quadros, as ‘forças ocultas’ não estavam preparadas para enfrentar a Campanha da Legalidade deflagrada em defesa da posse de João Goulart, o vice do presidente demissionário. Eles se articularam nos dois anos seguintes com inegável eficiência.

Nada de improviso “mal-alinhavado no plano estratégico”. Thereza Cesário Alvim reconhece que “uma propaganda muito bem paga – via IBAD – e bem dirigida, facilitada por notórios equívocos e desacertos do Governo, conseguiu transmitir de João Goulart e de sua assessoria imediata uma imagem distorcida na medida exata dos interesses golpistas” (1979, p. 8). Essa imagem distorcida foi transmitida diariamente pela mídia golpista e apaixonada.

(Do meu livro 1964, golpe midiático-civil-militar. Sulina).

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