Juremir Machado da Silva

A invenção do exílio

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A invenção do exílio Foto: Harry Lette/Pexels

À medida que o tempo passa, ou nós passamos no tempo, tudo o que era sólido se esfarela a cada manhã. Não é que desapareça no ar ou se torne líquido. Simplesmente se despedaça em muitos fragmentos. Gabriel Arquimedes queria saber de que eram feitas as manhãs. Havia passado longos anos trabalhando, como se dizia na época, de sol a sol, o que significava nunca ver o sol, saindo de casa antes da alvorada e voltando com a noite fechada. Nessa labuta com poucos descansos tinha amealhado o suficiente para morrer despreocupado com questões materiais, salvo ser enterrado ou cremado, o que também estava decidido e comunicado. O direito à metafísica era a sua maior conquista. Então, aposentado, começou a travar o seu diálogo com as manhãs.

Levantava cedo para sentir o sol, o vento, a chuva. Sentia que havia perdido muitas manhãs, ou todas, para um futuro sem luz. Quando falava disso com a família ou com os amigos provocava imediata rejeição. “Lá vem ele com esses papos fúnebres”, dizia-se. Mas curiosamente não era de trevas que ele tratava. Queria definir as manhãs. Na verdade, caso verdade haja nisso tudo, sentia um estranho desejo de agarrar a brisa, as gotas de chuva, os gritos correndo no ar, a vida no seu estado mais permanente, o da brevidade. Quem já não experimentou essa sensação absurda de querer aprisionar o instante? Há filmes nos quais um riso de criança fica ecoando enquanto o tempo passa. A imagem perde a nitidez até ressurgir em outra época. O tempo evaporou.

Gabriel Arquimedes dedicaria os seus últimos ao tempo. Mais especificamente às manhãs. Quando tudo lhe escapava, inventou o exílio. Partiu para longe com um único objetivo: sentir saudades de casa. Essa ausência forçada por ele mesmo garantiu-lhe um sentido denso e oportuno. A cada novo dia ele sentia uma profunda nostalgia das manhãs que não tinha gozado. Podia voltar a qualquer momento. Não o fazia para não quebrar o encanto de sentir-se povoado por significados que só se ativavam pela ausência. Quanto mais permanecia fora, mais se sentia dentro do que havia deixado para trás, o seu mundo de manhãs frescas e de frutas coloridas.

No seu lugar, seria apenas mais um. Longe dele, era uma pessoa especial, um desterrado, um desenraizado, um homem marcado pela saudade, alguém a ser ouvido, convidado para jantar, escutado por seus mistérios. Recebia atenção de novos amigos, gente que queria saber como eram as manhãs do seu passado, do seu país, do seu lugar. Havia poesia no que se diziam em manhãs geladas. Chegou, contudo, o dia de retornar. Gabriel Arquimedes queria morrer em solo natal. Não imaginava que morreria aos 101 anos de idade. Os seus últimos 28 anos seriam marcados pela saudade do exílio.

A um neto que desenvolvera a estranha paciência de escutá-lo, teria dito, se não for gabolice do rapaz, que havia, enfim, decifrado as manhãs. O seu corpo foi cremado ao nascer do sol. As suas cinzas foram espalhadas nos seus dois mundos. Quem lembra dele ainda se refere ao Gabriel das Manhãs.

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