Juremir Machado da Silva

Abrigo da PUCRS: vidas depois da chuva

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Abrigo da PUCRS: vidas depois da chuva Abrigo da PUCRS/fotos de Juremir Machado da Silvs

Chovia na manhã de sábado, 11 de maio de 2024, quando chegamos ao Parque Esportivo da PUCRS. Uma chuva fina, mas penetrante, borrifava as ruas esvaziadas da capital gaúcha. Com ar de inverno, embora sob temperatura amena, céu cinza chapado, Porto Alegre parecia remoer o seu drama, numa tristeza silenciosa e digna, circulação pequena de carros, mesmo para um final de semana, temendo certamente uma piora da situação climática. A pergunta que todos ainda fazem ecoava: Subiu? Tratava-se, claro, do nível do Guaíba. Outra pergunta recorrente surgia com a esperança de um alento: voltou? Falava-se da água nas torneiras ou da energia elétrica em certos bairros.

Tragédias sempre revelam histórias humanas em alto grau. Se um lado negativo nunca deixa de se mostrar, o positivo, sob a forma de élan de solidariedade, tende a impor-se em muitas situações. A catástrofe que abala o Rio Grande do Sul, com inundações jamais vistas em tal proporção, tem provocado uma onda generosa sem precedentes de apoio às vítimas. No Parque Esportivo da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), entre 250 e 270 pessoas recebem atendimento para suportar o choque sofrido. Elas estão no local há uma semana. Estima-se que ficarão ali por mais três ou quatro semanas. Mais de 2600 voluntários ligados à Universidade estão mobilizados para as mais diversas atividades, da coleta de doações ao abraço essencial.

Sob a supervisão do irmão marista Marcelo Bonhemberger, Pró-Reitor de Identidade Institucional, o abrigo da PUCRS serve quatro refeições diárias, preparadas pelo Laboratório Ciência e Arte dos Alimentos para os flagelados, oferece atendimento médico em diversas especialidades, dispõe de uma brinquetoca para as 70 crianças acolhidas e de acomodações para os bichinhos trazidos pelas pessoas que precisaram sair de casa, expulsas pela força das águas: 40 cães, 18 gatos e dois porquinhos da índia. Decana da Escola de Ciências da Saúde e da Vida da PUCRS, a professora Andrea Bandeira responsabiliza-se pelo dia a dia do abrigo. Está ali o máximo de tempo possível para resolver problemas, ouvir as pessoas e fazer tudo funcionar.

Quando a encontramos, conversava com agentes da Polícia Civil, que ajudam na segurança da comunidade improvisada. Segundo ela, depois de alguns dias de maior ansiedade natural, certa serenidade foi ganhando espaço. O importante, explica, é ter capacidade de escuta nesses momentos e saber esperar caso as pessoas queiram falar de suas angústias e do trauma que sofreram. A PUCRS atua em parceria com as secretarias municipais de Saúde e Desenvolvimento Social.

As pessoas do abrigo da PUCRS vieram em maioria do Humaitá, zona próxima à Arena do Grêmio, e das ilhas do Guaíba, duas áreas violentamente atingidas pelas cheias. Estão ali, em colchões espalhados pelo piso de tantas dimensões esportivas, famílias inteiras, vizinhos, amigos e, gente que ainda busca uma interação ou se recolhe no seu cantinho para refletir ou esconder a tristeza. Encontrar-se entre conhecidos estreita laço social, cimenta relações, ajuda a suportar a expectativa: como será depois da chuva? O que fazer quando for a hora de voltar para casa? Que casa se vai encontrar?

Saber escutar

Impecáveis em seus jalecos brancos, encontramos médicos do Hospital São Lucas disponíveis para os abrigados. Pediatra, Marcelo Scotta examina a situação de modo objetivo, suave e complexo. As crianças, diz, integram-se rapidamente. Adultos, com a plena consciência do quadro, podem ter mais hesitações. Se o estresse é o que obviamente mais suscita a necessidade de atendimento médico, doenças preexistentes encontram um olhar atento e o atendimento que, por razões diferentes, ainda não havia sido possível. Uma mulher com verrugas receberá a cauterização adequada. A hora é de ajudar em todos os sentidos possíveis, minorando o sofrimento e melhorando o depois.

Os médicos, como os demais voluntários, revezam-se em turnos de trabalho no Parque Esportivo. Dia e noite. Os psiquiatras e psicólogos à disposição recebem muitas demandas. Afinal, a situação é de ansiedade, trauma e expectativa em relação ao futuro próximo. Fabiana Colombo e Gabriel Behr estão ali para ouvir e ajudar. Se há quem se feche na sua dor, há quem queria ser ouvido. O atendimento individualizado dá confiança para que muitos revelem seus temores. Problemas anteriores à inundação disputam espaço com o golpe sofrido, sair de casa na corrida, com água pela cintura, de barco, sem documentos, deixando tudo para trás, sem saber para onde ir.

Esperança de futuro

Jéssica e a mãe, Cláudia da Rosa, moram na AJ Renner, que foi fortemente atingida pela enchente. Jovem, com um sorriso amistoso e terno, Jéssica exibe com orgulho a sua barriga de grávida. Vai ser menino. O segundo que terá. Avisadas do avanço das águas, elas prepararam o necessário para a saída. Por exemplo, documentos. Na hora do desespero, porém, Cláudia não pode pegar o que havia separado. Saíram com a água pela cintura. Alcançaram a Farrapos. Andaram na direção do aeroporto. O cenário era calamitoso. Dali em diante só a ajuda dos outros daria um alento. O abrigo da PUCRS seria a nova casa.

Mãe e filha repetem quase as mesmas palavras quando se referem ao futuro: como vai ser? O que vão encontrar? Como começar de novo?

– Era muita água – diz Cláudia.

– Tomou conta de tudo – completa Jéssica.

Um sorriso inesperado ilumina o rosto de Cláudia. Ela conta que suas meninas gêmeas completam 13 anos de idade naquele dia. Estão pelo Parque Esportivo, distraindo-se. Deus há de prover o futuro – diz.

Até pular corda

Na brinquedoteca, organizada por Andréia Mendes, do Laboratório das Infâncias, da Escola de Humanidades, criado na época da pandemia, crianças fazem múltiplas atividades. Ali não há temor. A infância, como se sabe, é mágica. Se os adultos só podem manter o coração apertado em tal contexto, meninos e meninas ficam livres para explorar a leveza da mente e do corpo. Andréia conta que uma criança pediu para pular corda. Providenciado o necessário, teve fila para a brincadeira. Quem pulou corda quando criança – impossível imaginar quem não o tenha feito – sabe que a sensação de prazer é indescritível. Alegria pura.

Aproveita-se também para prestar atendimento médico, ouvir e tirar dúvidas. A escuta é um fato essencial em tais processos. Pode-se perceber um comportamento hiperativo e auxiliar a família a entender o que isso significa e como agir. Sem romantizar um quadro de dificuldade, como o de estar num abrigo por causa de uma enchente, sem saber como será o pós-abrigo, tenta-se dar o máximo de conforto e amparo para aliviar a dor, que se mantém à espreita. Na brinquedoteca cada criança chega com um familiar. É um ambiente de acolhimento.

Membros da família

No terceiro andar do Parque Esportivo está instalada a residência provisória dos bichinhos. A veterinária Roberta Rodrigues é uma das responsáveis pelo setor. Os pets se agitam. Quando entramos, era a hora do repouso. Os cães dormiam e não queriam ser incomodados. Os gatos, em “quarto” separado, também, descansavam. Um filhote exibia-se numa pose de pleno relaxamento. Sentia-se em casa.

Toquinho depois da emoção

No aposento dos cães, Toquinho estava acordado, talvez ainda sob o impacto de ter tirado foto com o apresentador do Jornal Nacional, da Rede Globo, William Bonner. Como dormir depois de uma visita dessas! A tutora do Toquinho não pode subir escada. Ele é levado para vê-la.

Já a cachorrinha Sara, na verdade uma senhora idosa de 17 anos, está com tosse. Quando a veterinária fala disso, Sara tosse como que para confirmar. Ela seria submetida a um raio-X na tarde de sábado.

Sara com tosse

Os porquinhos não quiseram conversa com a gente. Permaneceram na penumbra. Foram tirados do convívio com gatinhos, que, principalmente os filhotes, pareciam demonstrar demasiado interesse por eles.

Coordenador da Segurança da PUCRS, o gentil Anderson Pacheco diz o principal quando falo do apego das pessoas aos seus bichinhos:

Anderson Pacheco

– São membros da família.

Vestiu terno para cumprimentar William Bonner

Luiz Carlos, o filho e Dona Jurema

Enquanto rapazes chutam uma bola, podemos ver de longe a figura grisalha do carismático Luiz Carlos Almeida dos Santos, entregador de jornal aposentado, o agora mais famoso abrigado do recinto. Ele conseguiu um terno para tirar fotografia com o jornalista William Bonner. Apareceu no Jornal Nacional. Deu o seu límpido recado.

Quando nos aproximamos, ele se levantou sorrindo.

– Sou seu fã – ele diz.

– Como assim? – brinco. – O senhor é que apareceu no Jornal Nacional.

– Sou Guaibeiro. Gostava de ouvir o senhor na Guaíba e acompanhar os debates. Mas tem um problema: sou gremista – ele avisa.

Ele lembra que passou a vida entregando jornais: Correio do Povo, Jornal do Comércio, Zero Hora. Tem 75 anos de idade. Admira William Bonner. Quis estar à altura da celebridade que iria encontrar.

 – Celebridade, eu? – teria reagido carinhosamente Bonner.

O apresentador postou em rede social a foto com Seu Luís Carlos, que se emociona ao recordar como saiu de casa, com a água subindo. Ele teme o que vai encontrar. Está contente no abrigo da PUCRS, recusou a oferta de um familiar que quer alugar um lugar para ele. Está ali com a mulher, os filhos e um netinho. Recompõe-se da emoção. Comenta:

– Acho que não disse bobagem, não é?

Ele foi soberbo no Jornal Nacional. Recorda-se com carinho e orgulho dos tempos de jornaleiro. Na casa de Dona Luísa, uma cliente de quem sente saudade, entregava o jornal e tomava café.

Diante do comentário sobre jornais estarem saindo só em versão digital, ele toma num sentido mais amplo e reflete em voz alta:

– A informática está engolindo tudo.

Apaixonado por futebol, sugere:

– O Campeonato Brasileiro precisava parar.

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