Juremir Machado da Silva

Acontece no meu coração

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Acontece no meu coração Foto: Raphael Rychetsky/Unsplash

Sim, acontece que no meu coração o cotidiano, com suas repetições e dias nublados, é um acontecimento. Acontece que me vejo inventariando nuvens e reinventando o passado. Sei que a nostalgia está fora de moda e que Anitta dá o tom sem florear a arte. Para fazer sucesso, segundo ela, é preciso que a música tenha um “soca, mete, rebola e toma”. Acontece que sou do tempo em que se queria mais, algo acima das possibilidades de cada pessoa. Acontece que o corpo talvez seja a derradeira terra dos acontecimentos a que cada um pode almejar.

E assim vamos vivendo como quem espera acontecimentos que só podem ser imaginários. Na televisão, o acontecimento é quase sempre trágico, as guerras que se repetem, as hostilidades que crescem, a humanidade que não se emenda, os líderes mundiais que se apequenam, as picuinhas locais que se agigantam, as rusgas que explodem em conflitos armados, as vidas de parte a parte que nada valem, como se seres humanos fossem peças de um jogo virtual que surgem e desaparecem em profusão, sem deixar rastros, intercambiáveis, insignificantes, irrisórias. Sai uma de cena, entra outra, todas semelhantes, inúteis.

Acontece que me acostumei a ver a vida como algo sagrado, um instante infinito no enigma da eternidade, um brilho singular na obscuridade do tempo, uma coisa indefinível diante da fartura de conceitos e definições que jamais esgotam o sentido dos paradoxos e não calam as perguntas sem respostas possíveis, como se só o escândalo do indemonstrável fosse digno de reflexão. E assim me acontece de entrar em fases de especulação, tentando agarrar o sopro de vida que as guerras dizimam, os inimigos ignoram, as urgências extinguem, os invernos congelam e os mercados rejeitam por falta de demanda.

Acontece que sou um cronista antigo, apegado ao credo da palavra em chamas, adepto da revolução dos sentidos, sem compromisso com qualquer compromisso, exceto o do jogo com os significados que se escondem na rotina das frases, na canseira das orações, na intimidade das sestas, na pasmaceira das conjunções adversativas, na mata densa dos períodos, das sentenças, das subordinações e dos predicados. Todo dia me acontece de tentar fugir das estruturas, que me alcançam, submetem e punem. Na sociedade do espetáculo a ninguém é permitido andar por atalhos, trilhas, sendeiros, passagens, veredas. Aonde você estiver o braço longo da subordinação o alcança e traz de volta.

Também acontece que acredito na polissemia do verbo, no pluralismo das vozes, inclusive das que me contradizem, na diversidade dos pensamentos, das crenças, dos mitos, das ideologias, que esterilizam as imaginações, pregam o unitarismo, mesmo quando, por estratégia, louvam as diferenças e defendem a superação da discórdia. Acontece, por fim, que, na solidão das madrugadas, fulgurâncias iluminam o caminho e me convidam a ficar de olhos abertos observando o fluxo das pessoas no movimento incessante dos barcos, dos passos e dos acontecimentos que se eternizam no filmezinho que ninguém verá.

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