Juremir Machado da Silva

Autoanálise em público

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Autoanálise em público

Tem algo errado comigo. Só agora vi isso? Pois é, sou lento. Existe um rótulo em inglês – tem rótulo para tudo em inglês – muito pertinente para designar as interrupções masculinas condescendentes a mulheres: mansplaining. Eu sofro mansplaining de todos os gêneros. Quer dizer, sofro o equivalente a isso para um homem. Atraio manifestações condescendentes, não apenas interrupções. A pessoa olha para mim e já vai dizendo com voz paternal, suave, acolhedora:

– Você vai entender, deixa só eu explicar…

Quando comento isso com amigos, eles me dizem condescendentemente, em tom mais afetivo, adocicado, protetor:

– Talvez fosse melhor fazer uma terapia, sabe?

Há dois tipos de condescendência: a involuntária e a canalha. A primeira nasce de uma sensação de superioridade inata de quem a pratica. A segunda, embora mais sacana, talvez possa ser revisada, quem sabe, por uma terapia. O condescendente involuntário sempre quer o bem da sua vítima. O condescendente canalha quer humilhá-la. A condescendência é um jogo de poder. Existem alguns modos de reação à condescendência: a resposta imediata, que pode ofender o ofensor; a ironia, que, às vezes, só vem à mente uma semana depois do ocorrido; e o cuspe no olho, que pode gerar um BO ou o fim de uma boa relação.

Mario Quintana foi o mestre das reações irônicas aos atos de condescendência por estupidez, o que ficou resumido nesta anedota:

– Gostei muito do seu livrinho!

– Obrigado pela sua opiniãozinha.

Sempre fui alvo de condescendência no lançamento de meus livros. Isso na época em que ainda acreditava no prêmio Nobel ou, ao menos, no Açorianos de Livro do Ano, até que eu e o grande David Coimbra perdemos juntos. Ainda ouvimos de um jovem escritor em ascensão:

– Bons livros de jornalistas os de vocês. Sigam por aí.

O normal em lançamentos é ouvir com muito entusiasmo:

– Agora, sim. Esse, sim!

Atraio condescendência talvez por ser incapaz de falar grosso, de confrontar, de ser indelicado. Falo baixo, sempre buscando a conciliação, apostando num riso compartilhado, relativizando. Se ofendo alguém, levo meses ou anos digerindo o episódio. Se engulo a condescendência, levo meses ou anos digerindo a minha falta de reação.

Um dia, no ônibus, me veio uma resposta. Sem querer, falei:

– Parabéns pela sua elevada autoestima!

Os passageiros me olharam. Eu estava falando sozinho, respondendo a alguém que me havia aconselhado a ler a Folha de São Paulo todos os dias. Uma senhora tratou de me consolar:

– Não se envergonhe, é da idade.

Eu estava com 43 anos. Já recebi sugestões para ler Michel Maffesoli e Edgar Morin, para pesquisar sobre o Internacional de 1975, 1976 e 1979, fazer uma viagem à Paris antes de opinar sobre a França, ouvir Belchior, conhecer a vida da campanha gaúcha, tentar escrever um texto por dia, conhecer as crônicas de Rubem Braga e até descobrir a literatura de Michel Houellebecq. Uma vez escrevi um artigo com pseudônimo só por brincadeira. Recebi uma mensagem comovente:

– Por que não tenta escrever como o fulano…

Fulano era o meu pseudônimo. Outra vez, sugeri o nome de um intelectual para uma mesa bacana. Na saída, ele me deu carona. No caminho, depois de alguns floreios, foi direto ao que o interessava:

– Por que não mudas a tua maneira de escrever?

– Como eu deveria escrever?

– Como a fulana…

Escrevi um livro com o título de “A sociedade midíocre”. Estava orgulhoso do meu achado. Recebi, então, um ataque direto:

– É medíocre, seu analfabeto!

– Não, é um jogo com mídia – expliquei.

– Me engana que eu gosto, seu medíocre.

A forma mais praticada de condescendência sem maldade é a que começa com a pergunta “já ouviu falar do…” ou “conhece o…”

– Já ouviu falar do Paul Auster?

Essa forma pode ter acréscimos piedosos:

– Já ouviu falar de Bach?

– Sim, claro.

– Um pouquinho, não é mesmo?

– Claro, claro.

– Já ouviu?

Outra modalidade interessante é a filosófica:

– Eu poderia te sugerir um texto de Kant, mas é difícil de ler…

Enfim, serei chamado de ressentido. Fico esperando a condescendência que este texto evidentemente provocará: “Deixa eu tentar te ajudar, o termo em inglês para isso é…”

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