Juremir Machado da Silva

Cenas da inesquecível enchente de 2024

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Cenas da inesquecível enchente de 2024 Praça Garibaldi, o Guaíba em busca do seu passado/Foto de Juremir Machado da Silva

Vivemos um tempo tão acelerado que talvez as lembranças se produzam antes do que os fatos. Ou no mesmo instante em que eles se passam. Em poucos dias, com tantas imagens circulando, a sensação é de se estar vivendo há muito tempo o que ainda nem terminou. A grande enchente de 2024 no Rio Grande do Sul, a mãe de todas as cheias, será lembrada pelas mais de cem mortes, por cidades destruídas e por acontecimentos prosaicos que aguçam a sensibilidade da nossa época.  

Uma catástrofe cujas imagens se tornarão patrimônio público.

Será a enchente do Jacaré do Menino Deus, em Porto Alegre.

A enchente do cavalo caramelo, que chegaram a confundir como uma égua, equilibrando-se em pé no telhado de uma casa, em Canoas. O presidente Lula disse que foi dormir inquieto com a imagem do animal na sua cabeça. Influenciadores digitais clamaram pelo seu resgate, que seria acompanhado ao vivo. Gaúchos viram na resistência do bicho um símbolo de identidade regional. Comoção nacional. Em outros tempos, ele teria sido, quem sabe, abatido com um tiro para não continuar sofrendo.

Ponto positivo para os dias de hoje. Tão positivo quanto o élan de solidariedade que percorre o país e faz celebridades digitais disputarem entre elas quem consegue mais dinheiro mais rapidamente. O negativo são os saques e os abusos em abrigos, que parecem, em qualquer lugar, fazer parte do roteiro dessas situações de calamidade.

Será também a enchente do boi sobre o altar de uma igreja, em Taquari, no mais vivo dos presépios que se possa imaginar.

Cenas inéditas, que parecia típicas de outros países, de outros continentes, de guerras civis ou de furacões ou tsunamis, se produziram como consequência da tragédia climática mais grave de nossa história: Eldorado, uma cidade inteira evacuada pelo ar ou pela água.

Roca Sales, uma cidade que talvez tenha de mudar de endereço.

São Jerônimo, na região carbonífera, virou uma ilha e recebeu fardos de comida e água jogados de paraquedas pela aeronáutica.

Bairros de Porto Alegre, como Navegantes e Sarandi, viraram rios, canais de circulação de pequenos barcos, uma Veneza trágica afundada na dor, na lama, na água barrenta e no desespero de todos.

O aeroporto Salgado Filho, na capital gaúcha, ganhou ares de lugar fantasma, protegido pelo exército, com pista para hidroaviões.

Histórias pessoais emocionantes se acumulam:

No Sarandi, um casal de idosos deixou a casa, com a água chegando ao segundo piso, sem qualquer documento ou agasalho.

Essa é a cena mais comum entre tantas que são contadas.

Dois jovens franceses e uma professora carioca levaram oito horas de carro do centro de Porto Alegre até Gravataí, um percurso de trinta quilômetros, em busca da rodovia para o litoral gaúcho.

Será a enchente da mãe gritando “são dois bebês” para não perder os filhos gêmeos no momento mais tenso do que lhe acontecia.

Os jornais de Porto Alegre lembrarão da grande enchente que os atingiu em cheio. O velho Correio do Povo foi invadido pelas águas, na sede, no centro, e no parque gráfico, na Voluntários da Pátria. Parou de circular em papel. Zero Hora também foi afetada. A enchente acelera uma passagem que se dará cedo ou tarde, do impresso ao digital.

Nas ruas, para o cronista repórter que anda para captar a atmosfera dos dias, chama a atenção a aproximação entre pessoas que até ali não se conheciam, em torno de réguas com tomadas para carregar celular ou em pontos com sinal de internet. Agrupamentos em calçadas que, para além do aspecto utilitário, aproxima e produz calor humano.

Da frente da rodoviária de Porto Alegre, que virou um grande lago entre viadutos semiafogados, à beira do inflado rio Guaíba, ficará a lembrança da pista construída sobre o leito da rua, em tempo recorde, e da derrubada da velha passarela de pedestres para que veículos altos pudessem rodar sobre um piso mais elevado.

Ficará também a lembrança dos dias sendo contados à espera do retorno da água nas torneiras. Quem poderia imaginar que, em quatro anos, Porto Alegre ficaria isolada duas vezes: em 2020, na pandemia do coronavírus, e em 2024, na maior de todas as cheias, a primeira cheia do Rio Grande do Sul totalmente coberta pelas redes sociais.

Ficarão as imagens de guerra, os cenários devastados, os improvisos: repórteres se aventurando até cidades antes tão próximas e agora tão distantes e de difícil acesso, com expressões típicas do front circulando em tom misterioso: “fulano conseguiu chegar a Eldorado…” ou, como sussurram os jornalistas em momentos de excitação antes de uma grande cobertura, “vamos colocar alguém lá dentro…” E lá dentro é aqui, em nossos pátios, nossas casas…

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