Juremir Machado da Silva

Como a imprensa ajudou a derrubar Jango

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Como a imprensa ajudou a derrubar Jango João Goulart | Foto: Reprodução PDT

A revista semanal “O Cruzeiro”, de propriedade do magnata da imprensa Assis Chateaubriand, descreveu com entusiasmo, na “edição especial da revolução”, de 10 de abril de 1964, o golpe “hora a hora” em Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. Um fragmento dessa cobertura revela, por trás da aparente neutralidade da narrativa, a dimensão do comprometimento da publicação com os golpistas: “O Governador Magalhães Pinto fez seu pronunciamento à Nação. Estava formada a Cadeia da Liberdade, que levou a todo o Brasil a palavra do líder mineiro. Governadores de outros Estados, como São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Espírito Santo, Guanabara, Goiás, Mato Grosso e Bahia, apenas esperavam a palavra do governador de Minas, para dar início ao movimento nas áreas de sua responsabilidade”.

A “revolução” da “liberdade” colocaria na “cadeia” todos os adversários da ditadura em implantação. Mas é em “Os idos de março e a queda em abril” que o reacionarismo da imprensa atinge o seu ponto culminante. Oito jornalistas – Alberto Dines, Antônio Callado, Araújo Netto, Carlos Castello Branco, Cláudio Mello e Souza, Eurilo Duarte, Pedro Gomes e Wilson Figueiredo –, na posição de “intelectuais orgânicos” dos golpistas, chafurdam na lama dos sofismas mais primários, bajulam os coveiros da democracia, exercem com esmero a arte sempre atual no jornalismo de desqualificar adversários ideológicos sob a aparência da pretensa objetividade e praticam, logo depois do fato mais grave da nação, o velho estilo jornalístico superficial, cheio de anedotas de mau gosto, sem visão global, com baixa complexidade analítica e alta capacidade de difamação. Comprometem as suas biografias sem o menor constrangimento. Tudo parece construído para emplacar uma “boa” anedota.

Alberto Dines, Callado e Figueiredo são os que mais se enlameiam. Dines vai das confissões – “a maioria dos blocos que passava diante do jornal parava para nos vaiar” – aos lamentos: “O presidente, contrariando todas as promessas, assinara a encampação das refinarias particulares de petróleo. Enfim, a sexta-feira tensa e negra. Despontava o verdadeiro sentido daquele dia”. Sobre essa sexta-feira, 13, a sexta do ato da Central do Brasil, ele distorce a realidade sem pudor: “O comício foi deprimente até para os esquerdistas”. Contradiz-se num último esforço de distanciamento: “O próprio Arrais foi vazio. Só Brizola e Jango acertaram em cheio. Brizola aprimorara sua técnica intercalando cada frase com uma pausa que conferia às suas teses uma retumbância enorme. E Jango estava num dos seus dias mais felizes, num dia de festa oratória, abandonando o texto do discurso para se dar ao luxo, raro, de arengar de improviso, com frases certas e certeiras”.

A partir daí o tom sabe. Dines e o seu “Jornal do Brasil” revelam-se militantes. O ódio ao governo de Jango aparece a cada linha. A verdade é negada repetidamente. Os jornais “O Globo” e “Tribuna da Imprensa” atacavam Jango sem cessar. Dines achava pouco ou nada: “A velocidade do presidente tirava a capacidade de resistir. Só podíamos dedicar um único editorial contra cada ato ou falação de Goulart. No dia seguinte, já havia outros para atacar. Mesmo assim, o nosso era o único, dos chamados grandes jornais, do Rio, a resistir. Os outros como que perderam a noção das coisas. Estarrecidos ou acomodados. Mas como rebater racionalmente, como enfrentar com argumentação inteligente a política do ‘manda brasa’. Perdíamos. Na batalha das ideias contra os slogans, o grande soldado do jornal foi Luís Alberto Bahia. Quanto mais tacanha era a jogada de Goulart, mais brilhante era o seu raciocínio numa emulação do requintado contra o grosseiro. A cabeleira enorme e mitológica do ex-trotskista contra os cabelos escorridos e poucos do arrivista de esquerda”.

“Manda brasa, presidente” era a expressão, transformada em palavra de ordem e satirizada pela imprensa, atribuída ao general Assis Brasil, chefe da Casa Militar, em exortação a Jango. Alberto Dines queria que a brasa do presidente fosse extinta. Para isso, qualquer meio era bom, qualquer aliado, mesmo o mais espúrio, era bem-vindo: “Em São Paulo [em 20 de março], reuniam-se no centro da cidade cerca de 500 mil pessoas na Marcha da Família. O inspirador era o governador Ademar de Barros, homem que estava longe de representar a antítese ideal de Jango. Mas já há algum tempo estávamos resignados a isto. O que importava era que, em São Paulo, meio milhão de pessoas tinha saído à rua, sem archotes nem tanques e canhões, apenas com cantos na boca e rosários na mão, para protestar contra o caos”. Sob inspiração direta dos Estados Unidos cujo telegrama enviado do Brasil ao Departamento de Estado sempre vale repetir: “Estamos adotando medidas para favorecer a resistência a Goulart. Ações secretas estão em curso para organizar passeatas a fim de criar um sentimento anticomunista no Congresso, nas Forças Armadas, na imprensa e nos grupos católicos”.

(O trecho reproduzido acima está no livro 1964, golpe-civil-militar, de Juremir Machado da Silva, publicado pela Sulina em 2014)

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