Juremir Machado da Silva

Crônica de uma crise sem precedentes

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Crônica de uma crise sem precedentes A chaminé que virou farol | Foto: Ana Rodrigues

Ando pela cidade para me chocar com meus próprios olhos. Lamento pelo bairro Sarandi dos meus primeiros anos em Porto Alegre. Estremeço ao sentir novo vento de chuva. Não consigo tirar da retina a imagem da Praça da Alfândega, a casa da Feira do Livro, inundada. Descubro que faço parte de uma velha guarda ainda mais antiga do que pensava: fico desconfortável com o marketing social durante tragédia. Os consequencialistas dizem que só o resultado importa, não a intenção, nem o efeito secundário. Um lado principialista desperta em mim. O que isso tudo quer dizer numa hora dessas? Que para mim a ajuda não pode ser trampolim para promoção pessoal. Espio pela janela e vejo helicóptero pousando no Hospital de Clínica. Ligo a televisão e estão lá as imagens aterradoras de Muçum, Santa Teresa, Roca Sales…

Porto Alegre parece outra cidade. Tem marcas que não se apagarão tão cedo. Diremos um dia, “foi na grande enchente 2024”, aquela que suplantou a de 1941. Como sempre, em situações de grave crise, os melhores e os piores sentimentos afloram: solidariedade e saque, generosidade e mesquinharia, coragem e covardia, entrega e indiferença. As pessoas se fazem perguntas repentinamente com sentido: o que é pior, ficar sem luz ou sem água? Eu me inscrevo entre os que acham impossível resistir a dois dias sem água saindo pelas torneiras. Recebo notícias de que importantes empresas gaúchas contribuíram com pouquíssimo dinheiro ou objetos enquanto gente de fora, artistas, por exemplo, foram mais rápidos e mais pródigos. Não citarei nomes por achar que a hora é de adotar atitudes positivas, jogando para mais tarde os acertos de contas, embora não se possa deixar de apontar desde já as falhas de manutenção. Parecia que se acreditava na sorte.

Tento não ser trágico quando descrevo a situação para estrangeiros. Busco a chamada objetividade. No meio do relato, fico emocionado. Voltam as imagens de estradas rasgadas como cartas, cavalo em telhado, cachorro tremendo de medo, jacaré nadando no Menino Deus, a água avançando sobre ruas tão longe do rio que pareciam impossíveis de ser atingidas. Leio os jornais e fico perplexo com a pressa de alguns. Há um tempo para sofrer e outro tempo para se curar das grandes tragédias, um tempo para ver a água transbordar e outro para secar as lágrimas da enchente, um tempo para partir e outro para ficar. Nunca pensei que um dia responderia a uma pergunta de guerra:

– Vocês vão ficar na cidade?

– Sim, vamos ficar. Temos de ver onde tudo isso vai terminar.

Resposta dada, emoção escancarada, não por nós, que estamos bem, numa área não atingida pelas águas, com água da caixa do edifício, energia elétrica que só caiu por algumas horas, mas por todos esses outros recolhidos em abrigos ou que perderam em oito meses pela segunda vez tudo o que tinham. O que pode fazer a crônica por alguém numa hora destas? Talvez tentar capturar a atmosfera psicossocial que paira diante de todos, essa mescla de arroubo, vamos sair desta, e estupefação, como foi que chegamos a tal ponto? Enquanto escrevo, chove mansamente. Mas, neste instante, nenhuma chuva parece mansa. Guardaremos por muito tempo cicatrizes avivadas pela meteorologia. 

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