Juremir Machado da Silva

De barco na Farrapos 15 dias depois da chuva

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De barco na Farrapos 15 dias depois da chuva Águas de São Geraldo, Porto Alegre/fotos de Ana Rodrigues e Juremir Machado da Silva

A perplexidade e a comunhão de sentimentos podem estranhamente andar juntas. Ao observador cabe estar atento aos menores gestos daqueles que enfrentam a adversidade com aflição e esperança. No bairro São Geraldo, em Porto Alegre, em duas ruas que cortam a Benjamin Constant, São Pedro e Guido Mondin, a água apodrecia lentamente, depois de duas semanas de ocupação do território, enquanto moradores chegavam até o fio da enchente, olhavam longamente para o fundo do bairro, repartiam desanimados ou ficavam para conversar. Como não se espantar com esta foto?

Refúgio em São Geraldo/foto de Diego Rodrigues

     

Na Guido Mondin, Ivan Diehl e seus amigos contemplavam o quadro. Ivan é sócio da cervejaria “4 Árvores”, com fábrica instalada na avenida Pará. Emprega quatro pessoas e produz cerveja encorpada, com até oito graus de teor alcoólico. Simpático, ele falava com suavidade sobre a situação, embora a apreensão não estivesse longe.

– Teremos perdas importantes. A negligência foi enorme. Tudo isso podia ter sido evitado com manutenção das coisas. É de não acreditar.

Ivan espera a hora de rever a empresa

O prejuízo deve alcançar os R$ 100 mil, o que é bastante para o tamanho da empresa, criada em 2015, tendo como público alvo iniciados no consumo mais conceitual de cerveja. Descontrair é permitido:

– A cerveja de vocês é para os fortes – brinco.

Ele e os parceiros riem. Á agua atingiu um metro de altura dentro da fábrica, engolfando equipamentos. A falta de energia elétrica é outro problema grave, pois o tipo de cerveja produzida exige refrigeração permanente. Em expedições de barco eles conseguiram retirar 30 barris de cerveja, de 200 disponíveis, do local. Sem pressa, Ivan apresenta pessoas e conta as histórias do bairro depois da enchente. Fala de “Seu” Danilo, que não saiu do seu apartamento, num segundo andar, ficando como o último dos moicanos, como se dizia antigamente, encastelado no seu bastião. Recebe celular carregado e o que for possível das mãos dos vizinhos barqueiros. Dona Helena, de 94 anos, também se recusara a sair nos primeiros dias. Finalmente aceitou ser retirada à medida que o tempo passava e as águas não recuavam.

– Além de tudo – diz Ivan – já tem problema de segurança por lá.

Rafael Reche chega. Também é empresário daquela zona, dono da RP Chumbadores, situada na avenida Polônia, loja de ferragem, equipamentos de proteção individual e utilitários. A conversa continua. Foram salvos 600 quilos de carne de Linguiça do Bolinha. Rafael encontrou um pequeno bote de garrafas pet. Empurra-o para a água malcheirosa, sobe na embarcação de fortuna, como dizem os franceses, e rema até sumir no fundo da rua. Coragem não lhe falta.

Barco improvisado, mas providencial

     

Sócio da RC3 Construtora com Ronald Cezar, Cesar Fagundes, espera que os governos ajudem na retomada. Confia nas palavras do governador Eduardo Leite. São todos bem-informados. Quieto, Taíso observa as águas sujas. É síndico de um prédio na Guido Mondin. Os moradores saíram enquanto a enchente avançava. Ele não tem ideia de quando será possível chegar até o edifício onde mora. Na frente da linha da inundação tem um laboratório de biologia molecular. A enchente apressou a decisão de ir embora. A mudança já começava.

Da sacada do segundo andar de uma casa de frente para a agua turva, “Seu” Evandro e a esposa fitavam a rua com visível tristeza. A tarde avançava, a água permanecia estagnada. Dono do restaurante Transamérica, na Cairu, uma das ruas mais atingidas pela cheia, ele diz nunca ter visto nada parecido em trinta anos vivendo ali. Era o primeiro dia da volta para casa. A entrada se dera com os pés na água. A primeira tarefa havia sido começar a limpeza do primeiro andar.

– Dá um desânimo tudo isso!

Um dia depois, no sábado, a calçada já estava sem água.

Ivan estava firme ali. Observava com suavidade e precisa:

– É surreal a imagem que se vê lá dentro, em cada rua.

Bairro fantasma, sem luz, tentativas de arrombamento, empresas afogadas, negócios parados, prejuízo não calculados, expectativa:

– Só com bomba essa água sai daqui – cada um diz.

Uma senhora surge na esquina da Benjamin Constant. Caminha lentamente até a beira da água. Fica alguns minutos ali. Olha o horizonte das águas. Por fim, atravessa a parte seca da rua:

– Não vai ser hoje que volto para casa – diz.

Emília é enfermeira. Saiu com água pelo joelho. Dá aula em Novo Hamburgo. Não sabe como fará nesta segunda-feira, quando as aulas forem retomadas. Mora num edifício da rua Paraná. Examina a água:

– O pior vem depois. Essa água podre vai provocar muitas doenças.

Sergio Viana, atingido triplamente pelas cheias

Diretor do Instituto Federal de Porto Alegre, Sérgio Viana mora na avenida Pará. A enchente o atingiu pelo menos três vezes: teve de retirar a família do apartamento onde moram. A esposa e as duas filhas foram para o litoral. O sogro, vizinho do outro lado da rua, também foi para a praia. O irmão do sogro, outro morador do bairro, seguiu a sorte de todos. Precisou deixar a residência. Passados catorze dias, Sergio ainda não tinha a menor ideia de como estava seu apartamento, situado no térreo. Ele vive a aflição de ver o tempo passar sem poder conferir o que sobrou do seu lar. Lembrava que o piso é de parquet e que certos móveis de madeira, de compensado, certamente entortarão.

– É duro pensar a cada dia que eu não vou encontrar a minha casa como ela era. Vem aquela vontade de dormir na cama da gente, de estar no lugar da gente, e não dá para saber o que vai se encontrar na chegada. Não é fácil ficar sem a referência que se tem. Além disso, vamos ver as coisas, quando voltarmos, imagens que ficarão por muito tempo.

O professor estima em mais de vinte dias o tempo para começar a retomada. Ele e a mulher decidiram preservar as filhas, de 11 e 16 anos, mandando-os já no começo das chuvas para a casa de uma tia.

O tempo é inimigo da espera. Enquanto as águas não recuam, melhor baixa a cabeça e trabalhar. Mas o Instituto Federal, na Coronel Vicente, no centro da cidade, também foi coberto pelas águas.

“Estação” São Pedro

Na avenida São Pedro esquina com a Ceará o quadro só era diferente pelo ângulo de observação: ruas mais largas, água a perder de vista, moradores reunidos em agrupamentos colaborativos. Ninguém solta as amarras de ninguém. Todos se ajudam. Um barco chega do fundo da São Pedro. Uma moça conversa com os tripulantes. Todos eles moram num condomínio de 19 andares na avenida Polônia. A grande preocupação é a segurança, os arrombamentos à noite. Uma patrulha se formou. Vizinhos fazem ronda de barco e dormem no edifício para vigiar.

– Tem problema mesmo por lá?

– Sim, não dá para descuidar – diz um deles.

Um ex-militar até pouco antes da enchente cobrir parte da cidade atua nessa equipe voluntária segurança do prédio. Jovem e acostumado com situações difíceis, parece à vontade.

– Temos de nos proteger – diz.

A situação exige cautela e discrição. Viaturas da Brigada Militar e da Força Nacional rodam na Benjamin Constant. A noite, que já chega mais cedo neste mês do maio agora com ar de inverno, não se fará de rogada para descer. A escuridão vai tornar ainda mais surreal o cenário. Não fosse tão grave, pareceria a gravação de um filme.

Diego e Lauro, heróis discretos e incansáveis

Diego e Lauro

     

Sábado de manhã, 18 de maio, com sol em Porto Alegre. Chegamos pouco depois das oito horas na Guido Mondin. Ivan, com seu cabelo amarrado no estilo rabo-de-cavalo, já está lá. Junto com ele, dois rapazes e uma menina: Lauro Esteves, Diego Rodrigues e Sophie. Lauro e Diego moram na Zona Sul da cidade, mas trabalham na Gelb Market, em São Geraldo, que continua inundado. Sophie, 13 anos, é filha de Diego. No chão, uma lona. Depois de 45 cinco minutos de trabalho a lona transforma-se num robusto bote a motor, carinhosamente chamado de Peneirinha. Com esse barco, em 13 dias de navegação, Diego e Lauro resgataram mais de trezentas pessoas e tantos animais que nem contaram. Viram de tudo um pouco, de cachorro desesperado refugiado no teto de um fusca azul a tentativas de furto. Em alguns dias, eles só passavam da Farrapos, na direção da Voluntários da Pátria, com escolta policial. A alegria de ajudar os outros, contudo, valeu as penas.

– Vamos lá – diz Lauro, piloto da embarcação.

Saímos pela Guido Mondin, atravessemos a Ceará e seguimos em direção à Farrapos. O cenário muda rapidamente. Uma massa de água impressionante enche ruas e avenidas. Passamos por carros que estiveram submersos e exibem as marcas da água em diferentes alturas. Vamos gravando vídeos, ouvindo nossos guias e tirando fotos do que nos chama a atenção. A ideia é fazer o rescaldo, caso já seja tempo, depois de duas semanas de tragédia. Estamos num grande deserto aquático com moradias silenciosas de cada lado. Dois grandes “canais” nos deixariam de boca aberta: as avenidas Farrapos e São Pedro. A profundidade andava por um metro e vinte centímetros na data.

Antes da saída, conhecemos “Seu” Nelson, 85 anos, morador da avenida Paraná nas últimas quatro décadas. Ele deixou seus gatos, com muita ração, no terceiro andar onde vive. Está otimista. Apesar do baque, já está pronto para viver e seguir em frente. Saiu de casa com a água pelo peito. Quer voltar logo, mas já sente o fim do pesadelo.

Partimos com uma declaração de Ivan bem presente:

– Ir até a empresa de caiaque é difícil de processar.

Passamos diante do prédio da cervejaria. A água baixou um pouco. Ainda falta muito, porém, para secar. Avistamos “Seu” Danilo entrincheirado no seu andar. Ele não saiu e, pelo jeito, não sairá. Lauro e Diego contam histórias de salvamento.

Foram recusados no Menino Deus. Disseram a eles que já estava tudo sob controle. Foram avisados de que no Sarandi estava perigoso demais. Louvam o chefe, Rafael, na Guelb, que continua pagando salários mesmo com a empresa fechada e desde o começo ajudando a todos como podia. Contam que no Lami o salvamento de uma vaca não deu certo. O animal voltou para a água. Um gaúcho de laço não mão teria advertido com estilo:

– Assim você vira churrasco, vaca burra.

Cervejaria de Ivan

     

Diego e Lauro tiraram, em São Geraldo, no colo um rottweiller de 50 quilos, com o focinho amarrado. Passamos diante do Instituto São Francisco. Um belo imóvel com ar fantasmagórico na solidão do ambiente. Na Farrapos, depois da São Pedro, em direção ao centro, uma mulher esquiva sai de uma loja carregando uma braçada de produtos de limpeza. Avança com a água pelo joelho. Um homem aparece do lado direito da avenida. Mais adiante, outro, no lado esquerdo. São as vivas almas perdidas numa paisagem sem gente e desolada. Na esquina da Farrapos com a São Pedro, cruzamento de enorme circulação de carros ao longo dos dias comuns, o gigante edifício Satélite, com o Banco do Brasil no térreo, é um encontro das águas. Dois grandes canais com fartura de água e silêncio. Pergunto como foi ver tudo aquilo nos primeiros dias:

– Pensei assim: ferrou. Fim do mundo. Parecia um filme de ficção científica – conta Lauro, em pé, na traseira do bote.

Uma imagem da avenida Farrapos

     

Nos primeiros dias, recordam, pessoas pediam socorro em prédios sem verdadeiras janelas, na Farrapos, por “frestas” nas paredes.

Na Presidente Roosevelt, paralela à Farrapos, o volume das águas parece compacto, talvez por estar no lado mais próximo do rio, mesmo ainda distante. Uma rua chama a atenção pela estranha beleza. É a Polônia, com seu túnel verde, árvores que se enredam no alto, reflexos na água que forma um canal denso. Lauro diz o que estamos pensando:

– É a rota romântica de Porto Alegre.

https://www.youtube.com/shorts/bSq1Z8FtW5c

 Quando voltamos para o porto, a Porto Alegre de sempre, da terra firme e das esperanças nunca perdidas, só temos algo a dizer a Lauro e Diego, nossos barqueiros nas ruas do velho e popular São Geraldo.

Sob o olhar de São Geraldo

– Parabéns pelo trabalho. Bravo!

Diego trabalha com TI na Guelb. Lauro é “facilities”. Faz sentido. Nada parece difícil para eles. Formam com Ivan um trio unido pelas chuvas e por um cimento social indestrutível: a solidariedade.

Se eu viver muito, repetirei uma frase e contarei muitas vezes a mesma história: quando andamos pela Farrapos num bote… Uma volta de barco num leito sobre o asfalto a partir de uma rua pacata.

     

As paisagens são, de fato, surreais.

Avenida Polônia

Sophie terá imagens inesquecíveis para contar aos netos.

Muita gente vai duvidar dentro de alguns anos.

Navegar no asfalto não deveria ser preciso.

De cara para o vento
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