Juremir Machado da Silva

Desistência por nostalgia

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Desistência por nostalgia Foto: Unsplash

Miguel Adolfo descendia dos persas por uma longa linha genealógica que lhe faltava esclarecer. Acreditava que todo escritor conta a mesma história onze vezes. Ou não tem as obsessões de um verdadeiro artista. Por que onze? Era outro ponto que ainda lhe cabia deixar mais claro. Sabia que Nísio havia decidido morrer por não suportar mais o excesso de sol, que, explicava aos poucos interessados, podia ser uma metáfora para a falta de mistério na sua vida. Como podia um homem viver sem uma parte de sombra? Essa pergunta ele dirigia aos interlocutores como se deles pudesse realmente obter uma resposta. Tudo havia seguido uma ordem límpida.

Nísio acordou num dia de sol, o quadragésimo-sexto de uma sequência implacável, com uma sensação estranha: não sentia mais interesse pela vida, pela sua vida, pelo que podia chamar de vida. Fazia todo dia as mesmas coisas, que até então lhe pareciam normais e satisfatórias: tomar café, vestir-se, andar pelas ruas, trabalhar, voltar para casa, tomar banho, comer, dormir, defecar, urinar, ouvir música, pensar em sexo, no futuro, no passado, no presente, enfim, tudo o que todos fazem, não necessariamente nessa ordem ou com esses termos. Então, de repente, tudo lhe pareceu explícito demais. Quando atravessou a avenida Pátria, quase na esquina com a 15 de Novembro, sentiu que já não era mesmo. Algo havia se quebrado dentro dele.

Foi isso que contou a Miguel Adolfo. Salvo se Miguel inventou parte do relato para torná-lo mais verossímil. A verossimilhança era a sua tara. Não conseguia aceitar que a vida pudesse bifurcar sem oferecer uma razão consistente. Que uma artéria se entupisse ou rompesse no corpo de alguém era algo que podia aceitar como parte de um procedimento invisível, não como o resultado de uma loteria existencial. O caso de Nísio entraria para a sua galeria de fatos estranhos a serem decifrados: o que leva um homem comum a adotar uma atitude incomum diante da vida numa tarde de sexta-feira ensolarada?

Por considerar inverossímil o desabafo de Nísio, não tentou convencê-lo de que, apesar de tanto sol, a vida valia a pena. Deixou o outro embrenhar-se na escuridão da noite aturdido pelos prenúncios da manhã seguinte. Uma única vez Nísio havia lhe falado de como via a solidão nas madrugadas: como as patas de uma aranha na parede. Falar disso acentuava a ideia de que Nísio não era tão comum assim, o que implicava uma anormalidade jamais confessada ou denunciada. A loucura seria a zona sombria dessa existência acossada pelo sol? Nunca se percebeu em Nísio qualquer esquisitice que pudesse retrospectivamente explicar o que lhe aconteceria. Ouvia rádio, gostava de jogos de futebol, frequentava bordéis e discutia política nos bares, como faziam os homens do seu tempo, um tempo de guerras patrióticas e de saudades não reveladas de entreveros antigos e de viagens longas.

A morte de Nísio foi recebida com ceticismo. Só se ouvia “não pode ser”. Pediram a Miguel Adolfo, amigo do morto, que explicasse o ocorrido. Na décima-primeira versão, ele se declarou vencido:

– Nunca saberemos – disse.

Essa afirmação doeu em todos mais do que a morte do homem.

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