Juremir Machado da Silva

Em defesa de quê mesmo?

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Em defesa de quê mesmo? Ato em apoio a Bolsonaro na Avenida Paulista | Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

Um assessor fardado de Jair Bolsonaro gravou uma reunião ministerial cuja pauta era como impedir que o eleito, não sendo o próprio Bolsonaro, tomasse posse na presidência da República. A ideia corrente era “virar a mesa”, fazer algo antes que fosse tarde, provocar uma ruptura institucional, meter o pé na porta, dar um golpe. As palavras gravadas são inequívocas. Pego com a mão na urna, Bolsonaro resolveu chamar uma manifestação na Avenida Paulista. Em defesa de que mesmo? Aparentemente do seu “direito” de propor um golpe. Para evitar mais problemas com a justiça combinou-se que os manifestantes não diriam o que sempre disseram nem repetiriam as frases da dita reunião do golpe. A ideia era intimidar a justiça.

Situações como essa exigem um esforço hermenêutico superior. Se há fartura de elementos contra o acusado e ele organiza um ato em defesa própria, o que espera? Certamente que o grande número de pessoas constranja a justiça e a impeça de fazer o seu trabalho tecnicamente. Só pode ter o tom de uma ameaça: olha só quantos estão do meu lado! Espera-se, no mundo, ideal, que a justiça não se impressione com uma manifestação de convertidos a tal ponto que nada provará para eles o que as provas já provaram para os demais. Na reunião do golpe, o general Heleno desenhou a necessidade de fazer algo antes da eleição, pois depois seria mais difícil ou impossível.

Os irônicos diriam que os criminosos sempre voltam aos locais dos seus crimes. Ou aceitam posar juntos para uma foto de família. A manifestação da Paulista tem o valor de um recibo, como se os manifestantes subscrevessem o que veio antes e afirmassem nada ver de mal numa retórica golpista explícita em uma reunião governamental. Troca-se a liturgia dos cargos pela orgia verbal da mesa de bar: cada um tem direito de dizer o que quiser ou de expressar a sua opinião, etc. Bolsonaro está inelegível. O bolsonarismo continua vivo. O ato da Paulista tem valor eleitoral. Prepara a próxima disputa. A presença de governadores mostra o quanto a democracia no Brasil vive em perigo.

Na imagem, mais do mesmo. Retorno às ruas da camiseta da CBF, Deus, pátria, família e interesses tribais. A mídia ficou numa sinuca de bico: havia algo na rua que ela não podia nem queria alavancar. Nada de dar, outra vez, tribuna para Bolsonaro se esbaldar. O capitão teve de praticar algo que não está acostumado: segurar a língua. Dá para imaginar a coceira que sentiu no corpo todo. Aquela vontade de chutar o balde, de oferecer cloroquina para os postes, de chamar o Xandão para briga, de elogiar torturador e clamar pelo golpe. Teve de se engolir, de segurar a onda, de conter o verbo, devagar com o andor.

A Paulista já viu manifestações maiores. A democracia é, de fato, uma bela invenção. Graças a ela, o golpista gravado e escarrado, em boa linguagem da vida real, ficou livre para reunir a sua tropa e pedir mais, embora com menos apetite. Fica-se sabendo que o golpismo no Brasil tem adeptos dispostos a mostrar-se em praça pública.

O lobo apareceu de cordeiro e pediu pacificação do país. De quebra, solicitou a anistia dos golpistas de 8 de janeiro de 2023.

Soa como um pedido de autoanistia.

Não vai colar.

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