Juremir Machado da Silva

Imaginários da esquerda latino-americana

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Imaginários da esquerda latino-americana Opositor de Putin, Navalny morreu em uma prisão na Sibéria | Foto: Reprodução FB

Em 1974, Cornelius Castoriadis, filósofo grego radicado na França, homem de esquerda, escreveu que já fazia quarenta anos que o marxismo se tornara ideologia, “no próprio sentido que Marx dava a este termo”, ou seja, “um conjunto de ideias que se refere a uma realidade, não para esclarecê-la e transformá-la, mas para encobri-la e justificá-la no imaginário”. O leitor pode encontrar mais elementos sobre essa leitura contundente em “A instituição imaginária da sociedade”, clássico desse autor de referência. O que isso significa?

Há uma diferença enorme entre a esquerda europeia atual e a latino-americana. Parte considerável da esquerda europeia deixou o marxismo para trás há décadas. Parte expressiva da esquerda latino-americana continua marxista e revolucionária. A esquerda europeia democrática condena a invasão russa da Ucrânia por Putin. A esquerda latino-americana passa pano por antiamericanismo. A esquerda europeia não hesita em rotular o Hamas de terrorista e em condenar severamente os atentados contra civis acontecidos em 7 de outubro de 2023. Parte da esquerda latino-americana relativiza destacando a opressão israelense sobre os palestinos, que existe, mas não pode justificar a execução de civis inocentes. A esquerda europeia denuncia o autoritarismo de Vladimir Putin e horroriza-se com as mortes de seus oponentes, como a de Alexei Navalny, o principal opositor do autocrata de plantão, que teve morte súbita numa distante prisão polar.

Slavoj Zizek foi visto como o mais sofisticado dos novos intelectuais mundiais de esquerda por um bom tempo no pós-queda do muro de Berlim. A admiração na América Latina passou quando ele condenou visceralmente a invasão da Ucrânia. Obviamente defensor da criação de um Estado palestino, Zizek não vacilou depois dos últimos crimes do Hamas: “A barbárie que o Hamas desencadeou sobre Israel deve ser condenada incondicionalmente, sem ‘se’ ou ‘mas’. Os massacres, violações e sequestros de civis de aldeias, kibutzim e um festival de música foram um pogrom, confirmando que o verdadeiro objetivo do Hamas é destruir o Estado de Israel e todos os israelitas. Dito isto, a situação exige contexto histórico – não como qualquer tipo de justificação, mas por uma questão de clareza sobre o caminho a seguir”. Na América Latina, “mas” e “se” dominam. Zizek, evidentemente, não justifica o horror da reação de Israel em Gaza, que ceifa vidas de civis. Outra coisa é compará-la com o Holocausto.

No seu último artigo, em Project Syndicate, Zizek elogia a única coisa que parece ter sobrado de Lenin: o pragmatismo para mudar. A esquerda, diante das mutações do capitalismo, tem de alterar as suas metas. Israel, para ter paz, precisa aceitar um Estado palestino. A Ucrânia terá de adaptar-se a uma guerra prolongada e botar ordem em casa: “Sob condições do mundo real em rápida mudança, a única forma de permanecer verdadeiramente fiel a um princípio – permanecer ‘ortodoxo” – no sentido positivo do termo – é mudar a própria posição”.

Quando tudo se torna equivalente, o sentido de proporção desaparece. A russa Galia Ackermann, que vive e leciona na França, escreveu artigo publicado no parisiense Libération depois da morte de Navalny. Para o jornal, a partir das ideias da articulista, “o mundo descobre a natureza criminosa de Vladimir Putin”. Descobre mais uma vez. Ainda: “A verdade provavelmente nunca será conhecida, mas Alexei Navalny, que fez da luta contra a corrupção no regime a pedra angular da sua luta e prometeu destronar o ‘sapo’ do Kremlin, foi vítima de uma vingança criminosa. Para Galia Ackermann, sua morte pode mudar as coisas”. Russos são presos por homenagear Navalny com uma flor.

Edgar Morin, aos 102 anos de idade, com a autoridade de quem lutou contra o nazismo aos vinte anos de idade e saiu do Partido Comunista Francês nos anos 1950 por não suportar o stalinismo, a história nunca para. No jornal Le Monde, Cécile Vaissié, especialista em Rússia e União Soviética, escreve:  “Ao matar Navalny, as autoridades acabam de reafirmar o seu direito à vida e à morte sobre os seus ‘súditos’”. Para ela, “se Putin e os seus mataram Navalny, foi por que não conseguiram dobrá-lo e obter dele, na tradição soviética, um arrependimento público. Um dia antes de sua morte, ele sorria e brincava, emagrecido, enquanto comparecia a mais uma audiência por vídeo”. Era preciso dobrá-lo ou silenciá-lo para sempre. Feito.

A Rússia de Putin endurece suas leis contra a população LGBTQIA+ a cada ano. O que diz parte da esquerda latino-americana? Parece que parte que curte as delícias da simplificação e usa os terríveis acontecimentos internacionais como estratégia de demarcação, uma forma de, a cada vez, fixar um “nós” e um “eles”, como num game em que é preciso não ter meias palavras nem hesitações. Nas redes sociais, marcadas por oposições binárias fortes, é isso que prevalece. Castoriadis dizia: “O marxismo tornou-se ideologia também enquanto doutrina das várias seitas que a degenerescência do movimento marxista fez proliferar”. Hoje, é o marxismo digital que as abriga.

Castoriadis, ao criticar o marxismo engessado, não se inclinava à direita. Muito menos à extrema direita. Apenas se permitia pensar.

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